12/08/2009

Trem de døido



Berlin, Hamburg e Neumünster, Alemanha + København, Dinamarca + Malmö e Stockholm, Suécia
6 e 7 de fevereiro de 2009

A viagem que realmente valeu meu passe de trem foi a longa e sinuosa jornada entre a República Federal da Alemanha e a capital do Reino da Suécia. Foram 1.421 quilômetros percorridos. 5 viagens de trem. Mais de 13 horas sobre trilhos, e outras 5 horas e meia panguando na estação entre um trem e outro. Seis cidades, um cassino fajuto, um sujeito levado em cana dentro do vagão.

Saí de Berlim às nove e pouco da noite, após o pseudo-atentado no Reichstag. Comi alguma gororoba em Hamburg por volta das onze e de lá segui para a estação de Neumünster, no norte da Alemanha, onde desembarquei à uma e meia para esperar o trem para a Dinamarca, que só partia às 4h45. Peraí, eu falei estação? Pois Neumünster (leia-se "Nóimínster", fazendo bico no segundo í) não tinha uma estação de verdade, com lanchonete pra enganar o estômago ou mesmo um banco pra deitar que nem mendigo. Era só um ponto no meio do nada, sem cobertura nem lugar de sentar, e aquele frio camarada que você imagina.

Conheci um alemão que também estava indo pra Copenhagen, onde trabalhava como dentista, e resolvemos sair andando pela madrugada em busca de algum lugar aberto e quente. Achamos um "cassino", bem entre aspas: era uma lan house onde ficamos umas duas horas na internet enquanto um pobre dum sujeito perdia todo o seu dinheiro em uma slot machine. Passou a noite toda ali, solitário, se entregando ao vício.

Às 4h45, pegamos o trem para Copenhagen. Um alemão cascudo pegou meu Europass, olhou desconfiado e sentenciou:

- Not valid.

Opa opa. "Not valid" é o chucrute da sua avó. Meu passe estava nos trinques e o balconista da Berlin Hauptbahnhof me garantira que pra essa viagem não tinha nem taxa de reserva obrigatória. Teimei com ele:

- Tá válido sim, olha a data aí.
- Aqui diz: só é válido junto com o passaporte. E não tem o número do seu passaporte escrito aqui.
- Ué. Não? - fingi de desentendido, tirei o passaporte do bolso e falei - Então é só anotar.

Muito a contragosto, ele pegou a caneta e acatou a sugestão.

Depois indicou o número da cabine onde deveríamos ficar. Foi o primeiro trem da viagem com cabines de verdade, estilo Assassinato no Expresso-Oriente, e não a estrutura de ônibus escolares que tinham os outros. Abrimos a porta e um australiano acordou assustado. Ele tava deitadão num dos bancos da cabine, e falamos pra ele ficar lá mesmo que procuraríamos outra. Entramos na cabine do lado, vazia, cada um esticou-se em um banco e fiquei lá discutindo futebol com o alemão-dentista, cada um zoando a seleção do outro por seus desempenhos na Copa 2006, até pegar no sono.

Lá pelas seis da madrugada, entra um indivíduo uniformizado, com cara de poucos amigos tal qual o alemão cascudo. Pronto: descobriram que a gente estava na cabine errada e iam nos tirar de lá. Mas não, ele só pediu o passaporte. Provavelmente estávamos entrando na Dinamarca. (Não me perguntem como o trem faz para atravessar a água. Dizem que os vagões são colocados num ferry, transportados e depois recolocados nos trilhos. Eu fiquei dormindo e não vi foi nada.)

Alguns minutos depois, assustados, ouvimos a voz do mesmo cara aos berros, agora na cabine ao lado. Falava em inglês:

- Cadê seus documentos?!
- ...
- Não tem documentos? Cadê suas coisas, hein?
- ...
- Você está preso. Vem comigo, você está preso.
-...
- Cadê seus sapatos? Cê não tem sapatos?! Vamos, anda logo.

Nunca saberei o que realmente aconteceu. Na hora cogitamos que o coitado fosse o australiano da outra cabine, mas quando amanheceu fomos ver e ele continuava lá, dormindo folgadão. Imagino que esse zé mané tenha entrado no trem na surdina, sem dinheiro, documentos ou sapatos (?!!), e acabou sendo preso de madrugada em pleno inverno dinamarquês. E o alemão-dentista lá zoando, falando que parecia a polícia nazista invandindo as casas pra prender judeus. Contei pra ele da frase-chave que se deve saber em alemão quando pintar alguma encrenca ("Pô, só porque eu sou judeu?!"), e ele riu bastante. Ao que parece, nem todo alemão vê problema em fazer humor com seu passado.

Descemos em Copenhagen às 10 da manhã. Eu ainda levaria mais algumas horas para chegar a meu destino final, incluindo a travessia da Øresund Bridge e as 4 horas e meia entre Malmö e Estocolmo, com direito a um atraso terrível de vinte minutos (a pontualidade alemã me acostumou mal, fazer o quê). Mas antes, aproveitei meus cinco minutos na Dinamarca para dar uma volta no quarteirão e conferir qual era a cara de København - como escrevem "Copenhagen" no original. Só deu pra notar a falta de gente, a grande quantidade de bicicletas estacionadas e essa interessante peculiaridade do alfabeto escandinavo, de riscar vogais no meio ou pôr bolinhas sobre elas. Se um dia eu arranjar uma dinamarquesa e for morar por lá, pode ter certeza: vou assinar "Lucås Paiø".


K
øbenhavn, perto da estação.


Cruzando os 7.8km da Øresundsbroen
.



Vejam o número 4: esse relógio na estação de Hamburg me fez repensar tudo que aprendi na escola sobre algarismos romanos.

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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