16/12/2010

Crônicas de um estudante de chinês

Previously on Boca de Gafanhoto... 
Sem entender bulhufas de chinês, Lucas vai para a China e cai numa aula onde os professores só falam a língua local.Alguns meses depois , aquele falatório incompreensível passa a fazer algum sentido, e ele já é capaz de pedir comida em restaurantes e escrever uma redação sobre seu fim-de-semana. Mas a odisséia para aprender esse idioma insano está longe de terminar... 

Segunda temporada – BLCU, março a julho/2010 

Em março de 2010, comecei um novo semestre na BLCU (Beijing Language and Culture University). Eu não morava mais num dormitório dentro do campus nem tinha tantos amigos que estudariam lá novamente, mas continuar o aprendizado na mesma universidade pareceu a opção mais lógica.

Os níveis da BLCU vão de A até F. “A” de Analfabeto, pra quem é um Tiririca em mandarim e precisa começar do zero. “F” de Foda, pra quem já se expressa num chinês invejável. Depois de completar o nível Analfa, em janeiro, fiz uma nova prova e me puseram numa classe com nome de vitamina, B12.

 
Aula multi-cultural: como se escreve "chá" em chinês, inglês, português, japonês, coreano, tailandês e espanhol. 

Ao contrário da turma anterior, que oferecia um apanhado geral dos povos do mundo (tinha francês, israelense, americano, cazaque, indiano, indonésio...), a maioria dos meus novos colegas eram coreanos. Minha interação com a classe acabou caindo um pouco, por uma simples questão de comunicação: geralmente eles conseguem ler e entender inglês, mas não o bastante para manter uma conversa longa ou improvisar uma piada. Conversávamos em mandarim, aos trancos e barrancos, e saímos todos juntos uma única vez, para um karaokê, óbvio – mas eu desconhecia os hits coreanos que faziam a cabeça da moçada. 

Também havia um pessoal legal de outros países, com quem eu proseava mais: um espanhol de dois metros de altura, um americano de Virginia, um australiano nascido na Inglaterra. Em compensação, tínhamos na sala um panamenho muito mala, que adorava dar sua opinião sobre o que não era perguntado. 

Panamenho mala: “O que você vai fazer no feriado?” 
Eu: “Vou pra Mongólia Interior.” 
Panamenho mala: “Putz, que escolha péssima, lá faz muito frio nessa época, credo.” (ele acabaria viajando à mesma Mongólia Interior no mesmíssimo feriado) 

O panamenho era tão mala que, em dia de provas, não arredava o pé da sala até que a professora corrigisse todas elas, e depois saía espalhando as notas de cada um. 

 
A sala B12, após a aula. 

Nossa professora também não era o melhor exemplo de bom comportamento. Tinha 28 anos e mentalidade de 14. Ela lecionava duas disciplinas: “Compreensão” (a aula principal, que engloba gramática, leitura e conversação) e “Chinês Prático”, uma aula semanal com temas mais ligados à vida cotidiana. Íamos pra frente da turma falar sobre algum assunto – uma comida típica do seu país, um filme que você gosta – e a professora se sentava pra assistir. Não raro ela ficava no fundão conversando borracha com as alunas coreanas, sem prestar atenção ao pobre estudante que gastava saliva lá na frente. 

Ela também gostava de tirar sarro dos alunos, com predileção especial por um gordinho da Indonésia de apenas 16 anos. Dava risadinhas quando ele falava e às vezes debochava de seu tamanho levemente avantajado: 

Indonésio: “Eu moro com dois primos mais velhos, e ocupo o quarto menor.” 
Professora: “Menor? Você tinha que ocupar o maior! Hihihihi” 

 
Foto da classe no jantar de final de semestre: a professora é a que está sentada no meio; na extrema direita, o gordinho da Indonésia.

O quadro de professores contava ainda com mais dois. Um era um cara bacana, mas que pouco podia fazer pra tornar sua aula menos maçante. A matéria era “Escuta”, e ele tinha que botar aquela infeliz fita cassete pra que ouvíssemos diálogos ininteligíveis e respondêssemos às perguntas. Era todo mundo com cara de “hein?” por duas horas seguidas. 

A outra era a “Nainai Laoshi”, que em chinês quer dizer “Professora Vovó” e era o apelido pouco carinhoso que ganhou de seus discípulos – não que ela soubesse disso, claro. A Vovó conseguia a proeza de tornar uma aula que tinha tudo pra ser ótima, “Conversação”, num tédio hediondo. Ao invés de conversarmos, ficávamos repetindo trechos enfadonhos do livro-texto. Acho que ela dá essa aula há cinqüenta anos e não está muito disposta a se atualizar. No final do semestre ela até pôs a gente pra falar um pouco mais e, num dia especialmente memorável, chegou a sorrir. Mas já era tarde demais. 

Preferi o meu primeiro semestre na BLCU do que o segundo. Talvez eu estivesse cansado das quatro horas por dia com o mesmo método, ou os novos livros embrenhassem por assuntos pouco atraentes (fábulas chinesas? formulários de inscrição?). Quando decidi permanecer na China e continuar os estudos, segui a recomendação de vários amigos, também egressos da BLCU, e migrei para uma escola particular. 

No próximo episódio: colegas que vão um dia e não voltam nunca mais, um mexicano sósia do Homem-Aranha e o dia em que o coreano de meia-idade cacarejou. Segunda-feira, no Boca de Gafanhoto. 


Publicado originalmente no Boca de Gafanhoto

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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