21/10/2011

Como não fazer um festival de cinema

 

O organizador do festival, um americano, assumiu o microfone e se dirigiu ao público que aguardava diante do telão: 

- E aí, galera. Como já deu a hora e o cara da bilheteria ainda não chegou, vamos começar a passar os filmes e depois a gente cobra o ingresso. 

Deu o play no laptop e apresentou o primeiro curta. Era uma produção sobre alienígenas azuis que caem acidentalmente em Beijing. Ah, e a espaçonave é um vibrador gigante. Efeitos especiais de quinta, atuações duvidosas e o idioma extraterrestre, um mimimimimi agudo traduzido por legendas em inglês e mandarim, completam o pacote. Não chega a ser engraçado, mas vale pela bizarrice. 

Daí, antes de começarem propriamente o programa da noite – o curta da nave peniana era só uma zoeira de abertura – anunciaram no microfone que o moço da bilheteria havia chegado e que infelizmente todos deveriam deixar a sala, comprar o ingresso e entrar novamente. O que se resolveria simplesmente com um sujeito indo de cadeira em cadeira, como faria um trocador de ônibus, virou um rebanho de dezenas formando um fila desencontrada na porta, atrasando a exibição e fazendo fuzuê. 

O nome do evento era Beijing International Movie Festival , que se autoproclama "o mais antigo festival de cinema internacional" da capital chinesa – estão na quinta edição. Pelo visto, longevidade não necessariamente se traduz em competência. Agora há eventos do tipo pipocando aos borbotões: um quase homônimo Beijing International Film Festival, patrocinado e organizado pelo governo, um festival de cinema europeu que rola no início de novembro e o 2o Festival de Cinema Brasileiro, que começa em meados de novembro (brazucas em Beijing, táqui o site oficial). Decidi encarar o International Movie Festival, que seria realizado a uma distância caminhável da minha casa, o que é um alento para esta cidade gigante. Os primeiros dias seriam no Yugong Yishan, um bar/pub/casa de shows transformado em microcinema quando necessário. 

Meia hora depois, ingressos comprados, povo sentado, veio um curta japonês. Chama-se "Script" e mostra um grupo de quatro pessoas em uma sala quase escura que estão ali para um certo "experimento". Ninguém se conhece e nem sabe o que fazer, não há instruções ou esclarecimentos. Sobre a mesa, encontram quatro envelopes de conteúdos diversos, incluindo um cronômetro, algumas fotos reveladoras e um enigmático script de cinema narrando com detalhes cada ação que eles haviam acabado de fazer e cada palavra que pronunciaram segundos atrás. Com direção tensa e roteiro bem amarrado, estava indo muito bem até que puf: o cara do laptop fechou sem querer a janela do player. Ao retomar o filme, não soube encontrar o ponto certo onde a história parou, mesmo com todas aquelas vozes da platéia berrando "é antes, é mais pra trás!". Colocou o filme uns dois ou três minutos depois do ponto onde fora interrompido e virou as costas, e que a audiência se virasse pra entender. Parece aquela hora no "Planeta Terror" do Robert Rodriguez que há um suposto rolo de filme faltando. A diferença é que ali era opção do diretor, e não burrice. 

O resto da exibição, aleluia, transcorreu sem problemas, e a qualidade do material me surpreendeu bastante. Havia um curta dinamarquês sobre bullying, uma mini-comédia francesa sobre um fazendeiro que cria parisienses em sua granja (!) para vender ao mercado chinês (!!), uma história de amor entre um palhaço de rua e uma ex-violinista rechonchuda, e um curta excepcional chamado "Piano Fingers", história de um casal já com décadas de casamento, um passado famoso como cantores de rádio e um futuro pouco promissor obnubilado pelo Alzheimer. 

Voltei ao festival dois dias depois, numa terça preguiçosa, para ver dois longas. Dessa vez a seleção foi bem mais fraca. Havia um filme suíço-canadense, "Neutral Territory", dirigido (mal) pelo mesmo sujeito que intepreta (pior ainda) o protagonista. E em seguida "My Blind Uncle", produção taiwanesa estrelada por um ator que é cego de verdade. Começa bem, mas depois descamba para o melodrama e dana tudo. Além disso, a menina choramingosa que faz a sua sobrinha é uma das criaturinhas mais irritantes que vi ultimamente nos cinemas. 

 
O nome do filme é "Meu Tio Cego". Se fosse "Minha Sobrinha Muda" seria bem melhor. 

Pior do que ver filme ruim foi aguentar a trapalhada da vez da organização: o diretor mandou a cópia errada do DVD, uma versão que tinha a palavra SAMPLE em letras gigantes tampando metade da tela, e os organizadores do festival sequer checaram com antecedência se estava tudo nos trinques. Descobriram o problema junto com o público, quando apertaram play. 

 
Muito agradável de assistir. 

O último dia do festival tinha o nome de "Budgetless Bombs" e prometia um apanhado dos piores filmes já recebidos pelos organizadores. Eu devia ter aprendido a lição e ficado em casa, mas a curiosidade mórbida falou mais alto: a entrada era franca, e se tinham escolhido o curta do dildo espacial como parte dos "bons", a seleção das bombas prometia momentos estrambóticos e divertidos. Dessa vez o local não foi um cineminha improvisado, mas um restaurante com mesas, hambúrgueres e cerveja barata. Como não fecharam o lugar especialmente para o evento, vários clientes estavam ali só pra comer e não faziam idéia de que haveria uma exibição de porcarias audiovisuais dali a pouco. 

De repente soltaram umas imagens sem som, projetadas na parede, de uma mulher que mora no meio do nada e passa o dia pintando soldados e criando cabras. Imaginei que estivessem apenas testando o datashow e que fossem repetir tudo depois. Ligaram o áudio no finalzinho do filme, veio o título – "Kaziah, the Goat Woman" – e os créditos finais, e ficou por isso mesmo. Aí, sem que anunciassem o que viria em seguida ou mesmo explicassem aos desinformados que tinha um evento acontecendo, eles deram início ao filme seguinte, um longa chamado "Heavy Metal Picnic". O áudio estava baixo, os comensais continuaram a tagarelar sem cerimônia e não dava pra entender porra nenhuma. Uma pena, porque parecia até interessante: era um documentário – dos mesmos realizadores de um certo "Heavy Metal Parking Lot" – que contrapunha imagens amadoras feitas em 1985 durante um festival de rock com registros recentes, vinte e cinco anos depois, de vários metaleiros e ex-cabeludos que participaram desse festival, hoje carecas e pais de família. 

 
Very Crazy Jeremiah. 

Ainda haveria a exibição de outras pérolas, mas pra ver daquele jeito, como um CDF na primeira fileira tentando prestar atenção na aula de geografia enquanto a turma do fundão toca o terror na sala, preferia não ver. Na saída aproveitei pra perguntar pro organizador do festival por que é que eles fizeram o troço num restaurante e nem se dignaram a avisar a clientela. E ele: 

- A gente achou que os clientes do restaurante fossem ficar nas mesas lá fora e aqui dentro ficariam só quem veio pra ver os filmes ruins. Mas aí esfriou, e todo mundo veio pra dentro. 

Outubro é outono em Beijing, a temperatura à noite oscila em torno dos 10 graus – todo santo ano – e não raro cai uma neve na segunda quinzena, como aconteceu em 2009. Tem que botar muita fé no aquecimento global pra taxar isso de imprevisto e soltar um "aí esfriou". 

Problemas técnicos acontecem. Filme ruim até que passa. Evento com organizador tapado, aí não tem perdão. 


Publicado originalmente no Boca de Gafanhoto

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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