Uma overdose de Beatles em Liverpool — Parte 1
Assim que você passa pela imigração, uma plaquinha dá as boas-vindas: "Welcome to Liverpool John Lennon Airport - Above us only sky". A logomarca é o famoso auto-retrato de John que estampa o pôster do documentário Imagine e inúmeras camisetas por aí. O irônico é saber que, quando adolescente, ele trabalhou como empacotador de sanduíches nesse mesmo aeroporto e costumava cuspir nos lanches da galera. Hoje o aeroporto leva seu nome, e espero que tenham melhorado os padrões de contratação.
Aproveitei uns dias de folga do trabalho pra fazer uma viagem que há tempos tinha em mente. Afinal, depois de atravessar na faixa em Abbey Road e tomar cerveja nos bares onde os Beatles tocavam por horas a fio (e enchiam a cara) em Hamburgo, me faltava uma visita à cidade natal dos caras. A ideia original era ir comparecer à International Beatle Week, que acontece anualmente em agosto e leva centenas de bandas cover a Liverpool, mas março também foi uma boa pedida: passagem e acomodação mais baratas, menos multidões se acotovelando no Cavern Club, e ainda tive sorte de pegar sol e céu todos os dias, o que para a Inglaterra é quase um milagre.
Liverpool explora sua história musical, especialmente a de seus filhos mais famosos, quase à exaustão. Já do ônibus para o centro da cidade você já encontra referências pra todo lado, de um enorme submarino amarelo no meio da rua até um condomínio chamado Imagine Park. Pra quem prefere Molejo, a cidade também oferece um punhado de atrativos não-beatles no cardápio, sejam museus, passeios de barco ou pints de Guinness pelos pubs da vida. Mas pra quem curte os Beatles, dos fãs ocasionais aos hardcore, Liverpool é o lugar para entender como aqueles moleques de classe média-baixa se tornaram o maior fenômeno musical do século 20 e curtir algumas das canções mais famosas do mundo nos próprios locais onde elas nasceram.
O ponto de partida ideal é o museu Beatles Story, localizado na área portuária de Liverpool, à beira do rio Mersey. A visita começa lá no comecinho, com a febre do skiffle que tomou os adolescentes ingleses dos anos 50 — era uma música meio country, meio rock, com um estilo simples ideal para jovens músicos que não sabiam tocar lhufas. Entre os objetos expostos, há o primeiro violão de George Harrison e os instrumentos toscos que os Quarrymen tocavam em seus primeiros shows, incluindo um washboard (tábua de lavar usada como percussão) e um tea-chest bass (baixo feito com um caixote de madeira, uma corda e um pedaço de pau).
Cada sala do Beatles Story reproduz um ambiente importante da história do quarteto: os inferninhos de Hamburgo, onde eles tocavam dez horas por noite; a loja de disco NEMS, onde garimpavam novos discos e cujo dono era Brian Epstein, futuro empresário da banda; o estúdio Abbey Road, onde gravaram sua discografia sob a batuta de George Martin; e uma réplica em tamanho real do Cavern Club, onde fizeram quase 300 shows.
Há traquitanas e bugigangas mil, de perucas e bonequinhos de gosto duvidoso até abotoadores (!) com a cara dos Beatles. Você vê de perto um Mellotron, espécie de teclado responsável por timbres famosos como a introdução de "Strawberry Fields Forever"; sobe a bordo de um Yellow Submarine; vê uma reconstrução gigante da capa de Sgt. Pepper's; o túmulo de Eleanor Rigby usado no clipe de "Free As a Bird"; uma sala branca com piano branco e oclinhos redondos em cima, homenageando Lennon; e quatro cabines que detalham as carreiras solo dos quatro. Já os podres da carreira da banda, como as brigas, as drogas e as demissões, são solenemente ignorados — é um museu oficial, afinal de contas. Mas mesmo sem parar pra ler cada texto e ouvir cada faixa do audioguia, dá pra passar umas três horas lá dentro e ainda sair querendo mais.
A segunda parte do Beatles Story, que fica em outro prédio a dez minutos do primeiro, traz exibições temporárias, e a atual é sobre a Invasão Britânica — quando Beatles, Stones, The Who, Kinks e outros grupos ingleses conquistaram o planeta nos anos 60. É interessante, mas como trata de artistas variados, a coisa é menos aprofundada e mais corrida. O British Music Experience, um museu que abriu ali perto há poucas semanas e percorre a história da música pop britânica até os dias de hoje, padece do mesmo problema. Há umas roupas de David Bowie aqui, umas letras manuscritas do Queen ali, uns bonequinhos das Spice Girls acolá; é legal como um passeio descompromissado, mas não espere muito mais que isso. O ponto alto foi poder tocar guitarra em réplicas daquelas que Eric Clapton, David Gilmour e outros usavam para dedilhar seus riffs.
As obrigatórias lojinhas de souvenir encerram a visita de cada um desses museus, e as do Beatles Story são especialmente perigosas: entre camisetas, chaveiros, canecas, canetas, sacolas, bonés, almofadas, baquetas, alças de guitarra, bonequinhos, porta-copos, livros, songbooks e óculos de John Lennon em todas as cores, é difícil sair dali de mãos abanando. Mas novamente, tudo tende a ser oficialzão e não lá muito criativo. A maioria das camisetas, por exemplo, reproduz capas de discos, quando tantas estampas bacanas poderiam ser criadas com referências menos óbvias: eu compraria fácil uma camisa com a cara da sheepdog Martha ou que ilustrasse versos enigmáticos como "Elementary penguin singing Hare Krishna", por exemplo. Fica a sugestão.
Shake it up, baby
O centro de Liverpool é bem compacto e muitas ruas são exclusivas para pedestres. É provavelmente o lugar do mundo com mais menções aos Beatles por metro quadrado: Rubber Soul Bar de um lado, Lennon's Bar do outro, Hard Day's Night Hotel virando a esquina, estátua solitária da Eleanor Rigby num banco de praça. Músicos de rua tocam Beatles o tempo todo e os pubs colocam plaquinhas do tipo "Aqui os Beatles tomavam cerveja antes de tocar no Cavern", cada um querendo destacar o seu papel, ainda que dos mais triviais, na história da música.
De noite o lugar ferve. Principalmente a Matthew Street, onde fica o Cavern Club — mas aqui faz-se necessário um breve panorama histórico. O Cavern original, originalmente um bar de jazz nos subterrâneos de Liverpool que acabou virando o centro do "Merseybeat" e ponto de encontro dos primeiros beatlemaníacos que vinham ver o quarteto ao vivo, já não existe mais há um bom tempo. Após fechar as portas nos anos 70, foi completamente soterrado quando o prédio em cima foi demolido. O novo Cavern, aberto nos anos 80, é uma reconstrução do original e fica do outro lado da rua, com um design bem parecido, mas não idêntico; é por isso que a réplica do Cavern no Beatles Story parece ser uma versão mais próxima do bar de outrora. Mas o que falta em autenticidade no novo Cavern sobra em sua atmosfera: é só descer dois lances de escada pra curtir música ao vivo a qualquer hora da tarde ou da noite, uma banda atrás da outra, no corredor comprido que culmina no palquinho de fundo multicolorido.
Mas o melhor show que vi no Cavern não foi bem naquele palquinho, e sim numa área extra que fica nos fundos, chamada Cavern Live Lounge. Foi ali que Paul McCartney se apresentou em 1999, naquele show famoso que passava sempre na MTV, com David Gilmour e Ian Paice como músicos de apoio. E vira e mexe pinta uma nova celebridade por ali: a Adele, por exemplo, cantou no Live Lounge em 2011. Há mais espaço para banda e público, mas ainda é um lugar diminuto que só comporta umas trezentas pessoas. O show que vi não teve ninguém ilustre, mas uma competente banda cover chamada The Cavern Beatles, que conta até com um Paul canhoto. O primeiro set trouxe as músicas mais óbvias da fase ieieiê, muitas das quais provavelmente são ouvidas no Cavern todo santo dia, tipo "I Saw Her Standing There". A segunda parte passeou por canções mais complicadas ou mesmo lado B, incluindo algumas que nunca imaginei ver ao vivo, como "A Day in the Life" e "Lovely Rita" (dedicada a uma Rita na plateia que comemorava seus 82 anos). Trezentas pessoas cantando junto, um palco famoso e uma Guinness na mão: difícil achar um programa melhor pra sexta à noite em Liverpool.
Beneath the blue suburban skies
Fechando o roteiro das atrações mais comuns, embarquei no dia seguinte no Magical Mystery Tour, um passeio pelos "lugares beatles" mais famosos de Liverpool. O ônibus, claro, é pintado exatamente como no filme tresloucado de 1967, mas a viagem não é lá muito psicodélica: os passageiros são todos bem família e o guia é um senhorzinho simpático que cresceu em Liverpool (e, fato avulso, é irmão do vocalista do Frankie Goes To Hollywood). Sob o céu azul dos subúrbios, percorremos ruas e casas onde os quatro moraram, pontos citados em canções e locais importantes da história da banda, como a igreja onde Paul conheceu John em 1957 (não, eles não estavam rezando; John tocava com os Quarrymen, bêbado inclusive, e Paul foi lá exibir seus dotes de guitarra). Mas é um passeio meio turistão mesmo, tanto é que só descemos do ônibus quatro vezes. Uma foi pra ver a fachada da casa onde George nasceu; outra pra conferir a casa onde Paul cresceu (que é aberta para visitação, mas com agendamento prévio, e esse tour não cobre); e finalmente, para os cliques obrigatórios nos locais que inspiraram "Penny Lane" e "Strawberry Fields Forever".
Penny Lane é uma rua larga como qualquer outra, mas foi nos pequenos detalhes que Paul buscou inspiração para a letra da música — e muita coisa continua lá, como a barbearia ("…there is a barber showing photographs / Of every head he's had the pleasure to know") e o corpo de bombeiros ("In Penny Lane there is a fireman with an hourglass"). Alguns estabelecimentos não perdem a chance de fazer uma alusão, como a lojinha "open 8 days a week" e um certo Sgt. Pepper Bistro, que funciona, não por acaso, no abrigo que fica no meio de uma rotatória ("Behind the shelter in the middle of the roundabout"). Já Strawberry Field era um orfanato onde o pequeno John ia brincar com a molecada; hoje é só um portão vermelho em frente a um lote que é puro matagal, rabiscado por zilhões de fãs com coisas como "Beatles Forever" ou "Paul is Dead".
O Magical Mystery Tour é indicado se seu tempo for escasso, já que visitar esses pontos todos por conta própria requer inúmeras andanças e baldeações. Há uma alternativa mais salgada — que acaba saindo até mais em conta se você estiver num grupo de três ou quatro — que é fazer o passeio de táxi com um guia especializado. Daí dá pra descer onde você quiser, sem ficar competindo com quarenta pessoas pra tirar a sua foto em Strawberry Field.
Mas às vezes são os lugares menos óbvios que acabam sendo bem mais interessantes, e há coisa muito mais legal para um fã de Beatles em Liverpool do que ficar tirando fotos de dentro do ônibus. Foi assim que conheci o irmão de um ex-beatle e toquei piano na casa do Paul McCartney — mas essas histórias ficam para a segunda parte.
Mas às vezes são os lugares menos óbvios que acabam sendo bem mais interessantes, e há coisa muito mais legal para um fã de Beatles em Liverpool do que ficar tirando fotos de dentro do ônibus. Foi assim que conheci o irmão de um ex-beatle e toquei piano na casa do Paul McCartney — mas essas histórias ficam para a segunda parte.
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