16/04/2023

Diário de um cozinheiro nível zero


Dia desses encontrei um registro que escrevi para mim mesmo no longínquo ano de 2011, quando morava na China, intitulado "Diário de um Cozinheiro Nível Zero". Devia ter sido alguma resolução de ano-novo ou a chegada iminente dos meus 26 anos (meu aniversário seria no dia seguinte), mas foi o dia em que decidi que não seria má ideia aprender a fazer ao menos uns ovos mexidos, e documentar a experiência para a posteridade. Pois a posteridade chegou, e resolvi compartilhar o texto aqui:

Domingo, 2 de janeiro de 2011

Depois de duas refeições consecutivas comendo miojo chinês, resolvi criar vergonha na cara e deixar de ser uma nulidade na cozinha. Vinte e seis anos nas costas e nunca fritei um ovo na vida. Minhas experiências culinárias se resumiam a preparar miojo, fritar hambúrguer e requentar a comida feita pela minha mãe. 

Fui ao Chaoshifa, supermercado que fica a um quarteirão da minha casa, e comprei ingredientes diversos: ovos, macarrão, massa de tomate, batatas, temperos. Sozinho e sem idéia de como pilotar um fogão, recorri ao Google. As gerações antigas tinham o manual da Dona Benta; eu tenho sites como How Cast e wikiHow. Fucei as páginas e resolvi que, nessa primeira aventura, me ateria aos ovos. 

A primeira tentativa foi um ovo frito. Na hora de quebrar, exagerei na força e espatifei a gema, impossibilitando um ovo frito bonitão, com clara e gema bem delimitadas. Esquentei a frigideira por mais tempo do que devia e, quando coloquei a manteiga, ela ficou marrom em questão de segundos. Desliguei o fogo, lavei a frigideira e comecei de novo. Fritei o ovo da gema espatifada e não ficou ruim, só não ficou bonitão. 

O estômago pedia mais e optei, dessa vez, por ovos mexidos. Quebrei dois ovos na tigela, dessa vez com mais sucesso. Adicionei sal, pimenta-do-reino e queijo derretido (peguei daqueles queijos em fatia que a gente põe no sanduíche e esquentei no microondas por alguns segundos. Pensando agora, é meio burrice derreter um queijo que vai encarar a frigideira logo em seguida, mas tudo bem). Bati a mistureba com garfo até ficar homogêneo, como mandavam as instruções na internet, e joguei na frigideira, mexendo com a espátula. Quando comecei a ver alguns pedaços empretecendo, desliguei. Não chegou a comprometer não: foram ovos mexidos até razoáveis, considerando minha fome e a completa falta de experiência.

Doze anos depois, tenho o prazer de reportar que já fritei múltiplos ovos, não como ovos queimados e tampouco derreto queijo no microondas para depois jogar na frigideira. 

05/04/2023

Fonobibliotecologia


Confesso que tinha um certo preconceitozinho contra os audiobooks. "Não é leitura de verdade", "É pra quem tem preguiça de ler" e coisas do tipo. Era, inclusive, uma baita duma hipocrisia, pois quando moleque eu gravava livros inteiros em fitas K7 – Manual do Super-Herói, Viagem ao Centro da Terra, Caçadas de Pedrinho – e até tinha minha própria locadora de "talk-books" (era assim que se chamavam nos anos 90), alugando fitas para os parentes mais generosos, como já contei faz tempo.

Em 2020, porém, ganhei uma assinatura do Audible de aniversário e resolvi experimentar. A ideia era aproveitar o "tempo morto" do dia a dia – indo e voltando do trabalho, lavando vasilhas, aspirando a casa – para aprender (ou simplesmente me entreter com) alguma coisa por via auricular. E acabei incorporando os audiobooks na lista de formatos em que consumo conteúdo, cuja última adição tinha sido o Kindle alguns anos antes.

Há períodos em que os deixo de lado em prol de outras trilhas sonoras para jornadas e atividades, como podcasts variados ou a boa e velha música, mas, como atualmente estou numa fase mais audiobúquica, andei matutando que o formato sonoro funciona até melhor para certos tipos de livros do que sua contraparte em caracteres romanos, ou pelo menos traz umas vantagens que a versão impressa não tem.

Por exemplo:


Livros onde a pronúncia das palavras é importante. Um bom exemplo é The Art of Language Invention, que mencionei no post anterior. Ser versado no alfabeto fonético internacional pode ajudar a saber que "Valar morghulis" não se diz "morgúlis", e sim "morrúlis", mas a melhor maneira de entender como palavras de grafia hermética (digamos, "M'athchomaroon" ou "Isalnœœlœ") são pronunciadas é mesmo ouvindo alguém falar.

 
Livros narrados pelo próprio autor. Isso, claro, se o autor for tão bom de papo quanto de texto. Mas escutar o próprio Dave Grohl narrando suas memórias em The Storyteller foi quase como passar umas horas tomando cerveja com ele e ouvindo seus causos de adolescência, de Nirvana, dos palcos da vida. Também é massa quando o autor empresta uma dramaticidade extra à leitura, como Stephen Fry ao narrar anedotas da mitologia grega em Mythos, que é difícil de replicar no texto impresso.

 
Livros em outro idioma para treinar a compreensão. Ouvir e entender uma língua pode ser mais complicado do que ler ou mesmo falar, e os audiobooks (assim como os podcasts) são uma boa pedida para treinar o seu inglês, espanhol, francês ou alto valiriano. Eu deveria seguir minha própria dica e escutar alguns livros em alemão, mas é aquela história, faça o que eu digo, não o que eu faço.

 
Livros com um grande elenco de vozes. Esses entram quase na categoria "audiodrama", mas são uma experiência interessante. O livro de Guerra Mundial Z (que não tem patavina a ver com o filme) é escrito como uma "história oral" de um conflito global contra uma legião de mortos-vivos, e cada capítulo é narrado por um personagem diferente. A versão em inglês para audiobook aproveitou para escalar um elenco de responsa, incluindo Simon Pegg, Mark Hamill, John Turturro, Alfred Molina, F. Murray Abraham e até Martin Scorsese (!), dando a impressão de se estar ouvindo um verdadeiro documentário de guerra.

 
Por outro lado, o meio visual continua imbatível para muitos outros tipos de conteúdo.

Há os exemplos óbvios – livros de referência, de fotografia, graphic novels etc –, mas mesmo livros de texto corrido que tenham ilustrações, diagramas ou tabelas são meio complicados como audiobook. Geralmente há um PDF acompanhando o arquivo de áudio e você pode consultá-lo quando quiser, mas é uma amolação ter que clicar no maldito PDF e achar o maldito diagrama mencionado pelo narrador, ainda mais quando você está lavando vasilhas e tem as mãos cheias de sabão. Não sei como são outros aplicativos, mas o Audible deixa a desejar quanto à usabilidade, e o PDF não é sequer otimizado para celular. 

(The Art of Language Invention, aliás, é um caso curioso: tem trechos que funcionam indiscutivelmente melhor como audiobook, como o capítulo sobre fonemas, e outros que só fazem sentido lendo, como a seção sobre sistemas de escrita.)
 
Se o livro é cheio de palavras complicadas, o melhor não é nem o livro impresso em celulose, mas um e-book como o Kindle, onde é só clicar no termo desconhecido para ver a definição. Em casos como Duna, que li ano passado, não consigo nem imaginar como seria ouvir o audiobook sem conhecer nada do universo criado por Frank Herbert: o livro tem zilhões de termos específicos, como Landsraad, Levenbrech e Kwisatz Haderach, que só consegui entender consultando o glossário de umas cinquenta páginas que vem no apêndice. Como nem tudo é perfeito, pra saber se a pronúncia certa é "Quisatz Raderatch" ou "Kvizáts Haderaque", só mesmo ouvindo o audiobook.

Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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