08/02/2024

O Símbolo Proibido - Um conto sem a letra A

Velhos leitores do Biselho conhecem o texto que escrevi em 2005 sem o uso do primeiro símbolo de nosso léxico. Hoje, dezenove invernos depois, publico um novo exercício lítero-restritivo: um conto inteiro omitindo esse mesmo símbolo. Desfrutem!


Me lembro como se fosse ontem.

Início de noite, depois do expediente. Ligo o televisor com o mero intuito de ver o jogo. Pro estresse diminuir, só mesmo futebol no monitor e uísque no copo; o resto, que fique bem longe. O noticioso, sobretudo, com seus vídeos deprimentes, descrições de crimes horrendos e infortúnios mil, me produz enjoo. E, nos últimos meses, só vejo informes escritos por plumitivos do próprio governo, dizendo como o glorioso poder régio constitui o último resquício de ordem e equilíbrio em nosso reino. De como motineiros violentos, que escrevem bordões nocivos nos muros dos municípios, querem desunir o povo, difundir o terror, destruir o bem comum.

Que porre.

Direciono o controle remoto pro televisor e ponho no futebol. O confronto é entre meu time do peito e um oponente bem pior, e comemoro o escore de um versus zero logo nos primeiros minutos. Encho outro copo de uísque depois do segundo gol. No terceiro, estou levemente bêbedo, e nem me enervo com o verboso locutor, como frequentemente ocorre.

Me irrito, porém, no momento em que o jogo é interrompido bem no meio por um súbito discurso do rei. Ele veste o indumento de sempre, um uniforme preto e roxo com o escudo régio no centro, e lê um texto impresso que tem em posse.

“Meu queridíssimo povo”, diz, em tom cortês, o homem que ordenou o sumiço de inúmeros opositores, “desculpem-me por interromper o vosso divertimento, e prometo que serei breve. O motivo do meu discurso de hoje é simples. Tendo em mente os copiosos tumultos promovidos por desordeiros e revoltosos, esses seres desprezíveis que pretendem demolir os nossos princípios, que pervertem convicções de nosso povo fiel, e que poluem os muros públicos com seu símbolo sórdido” – e nisso surge no televisor o velho e conhecido ícone do grupo rebelde, um círculo envolvendo o primeiro item do conjunto de signos com que se escreve o nosso léxico –, “decidi, depois de um concílio com meu fiel primeiro-ministro e nosso honroso Congresso, que, desde hoje, proíbe-se o uso do símbolo que precede o B. Todos os livros e textos, colóquios e documentos, no meio físico ou no eletrônico, podem seguir usufruindo dos outros vinte e cinco símbolos – suficientes, como demonstro neste modesto discurso de meu próprio punho, no objetivo de exprimir todo tipo de conteúdo que nossos intelectos entenderem úteis. O símbolo subversivo morre hoje, o que me enche de júbilo. Deixo vocês, meu povo querido, prosseguirem com o seu entretenimento noturno, sendo ele futebol, filme ou folhetim.”

Hein?, me pergunto, os olhos fixos no televisor. O que foi que eu vi? Um chiste vindo do líder-mor de nosso território? Um dublê idêntico do rei, confundindo o público com fins humorísticos?

Um pouco tonto com o uísque, fito o futebol que ressurge no monitor. O esporte em si prossegue do mesmo jeito; o locutor, contudo, tornou-se sucinto. De tempos em tempos, diz somente o nome de um dos indivíduos em jogo:

“Zezinho... Sérgio Lopes...”

Ou, com extremo comedimento, exibe esforço concebendo termos propícios:

“Ele é um... um excelente goleiro... que... bem...”

E no momento em que meu time obtém outro tento, ele estende o termo “Goooooooool” por longuíssimos segundos, como que querendo preencher o silêncio, e depois prossegue, inseguro:

“Que lindo gol! Foi ótimo... foi muito bonito! Digno de... de um mestre. Excelente gol!”

Perplexo e meio grogue, tento digerir o que vejo. Relembro outros decretos esdrúxulos que o governo implementou recentemente, proibindo vestidos de cores fortes, composições com versinhos obscenos e livros juvenis de conteúdo tido como impróprio. Foi possível se cumprirem todos esses vetos, com os numerosos membros do Regimento Repreensor exercendo seu poderio sobre os infringentes. Extinguir um símbolo ubíquo como o que precede o B é decerto um empreendimento custoso; porém, tendo em mente o enorme segmento do governo incumbido de conferir se leis e editos têm o respeito irrestrito do povo – zilhões de censores peritos em reconhecer e suprimir o que se considerou ilegítimo –, vejo que é possível o veto de hoje, mesmo que ilógico, ser cumprido com êxito.

Pego meu dispositivo móvel e resolvo conferir se o que vi no televisor foi simplesmente um sonho grotesco. Entro no site de um periódico e confirmo que os títulos e textos seguem o decreto do rei. Digito o endereço de um microblog e ocorre o mesmo. Tento escrever um bilhete eletrônico no meu grupo do futebol e todos os botões produzem o efeito previsto, menos o do símbolo que o rei tornou ilícito.

Nesse momento sem precedentes, é impossível compreender por completo que efeitos esse imprevisto desígnio régio pode produzir no futuro.

Vinte verões depois, porém, sei muito bem o que se sucedeu.


***


“Meu nome é Gregório e tem vinte e nove meses que só bebo líquidos de zero teor etílico”, digo pro grupo disposto em círculo, muitos rostos conhecidos, outros novos.

“Nossos cumprimentos, Gregório”, respondem eles, com sorrisos condescendentes e olhos tristes. Devem sentir que estou mentindo.

Só topei perder o domingo neste encontro tedioso por um compromisso que firmei com Denise. É isso ou prescindir do direito de ver o Pedrinho, o que em nenhum momento pretendo permitir. O nome do grupo mudou: “Ébrios Incógnitos” é o que diz o letreiro, fugindo do siglônimo prévio com o símbolo proibido em dobro. O espírito segue sendo o mesmo: reunir bebedores incorrigíveis como eu, no esforço de extinguir nosso vício. Comigo, pouco tem tido efeito. Sem os drinques, como digerir este mundo de hoje?

“Meu nome é Ingrid”, ouço um dos novos rostos dizer. “Eu bebo desde que... desde que...”

É comum, sobretudo em quem precede o Veto Lítero em muito tempo, que se continue com bloqueios no expor de conceitos. Percebo isso em Ingrid: seus olhos se movem em diferentes direções e seu timbre é incerto, como se um erro ínfimo pudesse ser mortífero.

“Desde que... enfim. Desde o Veto”, prossegue. “Sem conseguir dizer o que penso... só me restou beber. Hoje tem quinze... bem... um quindênio que suspendi os drinques.”

“Nossos cumprimentos, Ingrid”, repetem os outros, como robôs monocórdicos. Miro Ingrid e lhe sorrio. Meu gesto é correspondido. Em seus olhos verdes, percebo timidez e um pouco de medo, o que é corriqueiro num contexto destes.

O encontro é concluído e Ingrid some celeremente, sem que troquemos outro sorriso. Meio jururu, sigo meu próprio curso.

Tem uns vinte minutos que o sol se pôs e poucos veículos se movem pelo centro. Sempre que percorro este ponto do município, me vêm em mente os frequentes e violentos protestos de tempos remotos, com o objetivo utópico de depor o rei. Hoje, com vinte invernos de vincos no rosto, ele segue no poder com o mesmo vigor. De seus oponentes e críticos tem-se zero conhecimento – incluindo o velho primeiro-ministro, que se mostrou menos fiel do que o rei pôde consentir. O termo “protesto”, mesmo que respeite o Veto e continue existindo nuns poucos livros puídos, dificilmente é proferido pelo povo comum.

Olho pelo vidro de um pequeno empório que vende comes e bebes por preços imódicos. É só o custo excessivo que me impede de pedir um vinho tinto ou dois, pois o desejo segue o mesmo. Esplêndido: vendem produtos etílicos pertinho de um núcleo do E.I.

Me controlo e sigo em frente; lembro que, noutros tempos, este mesmo ponto foi um comércio de livros – um tipo de negócio extinto. Nos primeiros meses pós-Veto, houve diversos “volumes reescritos”, com títulos como Um Século de Solitude, Elise no Mundo dos Fenômenos e Um Giro Pelo Globo em Dois Meses e Meio. Seu sucesso foi efêmero e coincidiu com o surgimento de dispositivos móveis munidos de entretenimento infinito: vídeos em três dimensões, jogos imersivos, sons psicodélicos, tudo com o consentimento do governo e sem muito conteúdo escrito. Hoje, pouquíssimos leem; eu, mesmo, só os contos pueris que recito pro Pedrinho depois que o sol se foi.

Dizem os eruditos – todos servidores régios – que o Veto Lítero destruiu “somente” quinze por cento do léxico. Possivelmente foi o dobro ou três vezes isso; é impossível medir o número correto. Um vintênio foi suficiente pro meu cérebro esquecer o grosso desse repertório. Me lembro de uns termos, um número ínfimo, cujo sumiço me dói, mesmo que hoje soem como se fossem de um sonho inverossímil, ou de um mundo longínquo. Me sinto meio burro, meio impotente. Meio indiferente.

O edifício onde Denise vive com seu novo cônjuge, um certo tenente Miguel, é bege e feioso como todos neste setor. Chego no sétimo nível com o suor escorrendo: só os residentes, impreterivelmente membros do governo, podem usufruir do veículo condutor que sobe e desce pelos pisos do prédio.

Denise me recebe como sempre:

“Louvor eterno pro nosso sublime rei!”

“Oi, Denise”, respondo, seco. “O Pedrinho comeu? Pode ir comigo?”

“Sim.”

Meio minuto depois, ele surge com um sorriso no rosto, vestindo um suéter preto e roxo que deve ter sido presente do tenente. Sujeitinho xexelento, querendo converter meu filho num mini-títere do rei.

“Genitor!”, ele vem correndo e me envolve, contente. Confesso que me bole ter que ouvir esse termo cediço em vez de outro, hoje extinto, que Pedrinho desconhece.

“E os encontros do E.I., Gregório?”, Denise me inquire com olhos céticos.

Tiro o documento do bolso e lhe mostro todos os selos, o último com o número de hoje. Me despeço com um meneio silencioso e desço com Pedrinho. Penso em Denise jovem, inteligente, prenhe de lucidez. Hoje, é nítido que se tornou veementemente pró-governo, pelo menos no exterior. E no íntimo?, me pergunto. Mudou mesmo?

No cômodo de hóspedes do meu domicílio, pego um livreto e leio pro meu filho. Pedrinho ouve com interesse.

No meio de um bosque viçoso, vive um trio de porquinhos. O primeiro, residente de um quimbembe feito de feno, é muito preguiçoso e dorme o tempo inteiro, sem exercer nenhum ofício. O segundo, que vive num cubículo composto por enormes troncos de cedro, é ocioso como seu vizinho. O terceiro porquinho, porém, é muito esperto e construiu um sítio enorme com tijolos e pedregulhos. Seu sorriso só some se ele ouve dizer que um lobo perverso, cujo único objetivo é deglutir os leitões sem que sobrem restos, foi visto por perto.

“Genitor”, diz Pedrinho, curioso, “e se ele comesse legumes, por exemplo? Por que o lobo tem que ser ruim e comer os porquinhos?”

“Tem gente que só tem seus próprios interesses em mente”, respondo. Ele encolhe os ombros, como se dissesse: que mundo esquisito, e dorme sem esforço. Eu, por meu turno, sigo merencório por um tempo e vejo que me é difícil resistir: vou no pequeno depósito de provisões em meu domicílio, pego um uísque e digo “oi” pro meu velho vício.


***


No encontro seguinte dos Ébrios Incógnitos, só consigo deter os olhos em Ingrid. Observo seu rosto tímido, seus longos cílios e resplendentes olhos verdes. Escuto seu timbre doce, porém firme, como se escondesse um explosivo dormente. Contemplo seu jeito genuíno, sincero, e me envergonho de mim mesmo, descuidoso com meu etilismo e escondendo-o dos outros.

Findo o compromisso, venço o receio, chego perto de Ingrid e ouso propor-lhe um convite: “Quer dividir um sorvete?”. 

Contente, recebo um sorriso e um sim.


***


Dois sorvetes e dois sucos depois, é como se nos conhecêssemos desde muito tempo.

“Esses nomes de frutos...”, diz Ingrid, percorrendo o menu. “Dos nomes velhos, só existem uns poucos hoje. Pêssego, coco, figo... e...”

“E temo que é só isso”, completo.

“Esse negócio de fruto-do-vinho, fruto-dos-símios... eu considero meio esquisito. Tudo é esquisito. O nosso próprio jeito de nos exprimir hoje é esquisito.”

Olho em meu redor, receoso de que outros clientes nos escutem; Ingrid repete meus movimentos desconfiosos. Vemos somente um senhor com seu netinho, e três mulheres discutindo entre si seus flertes recentes.

Resolvo usufruir do momento e, intrépido, pergunto se Ingrid tem um cônjuge, um consorte. Seu suspiro, imprevisto e pungente, me descreve tudo.

“Ele sumiu depois do Veto Lítero”, diz num sussurro. “Isso tem... dezenove verões.”

“Sinto muito”, é só o que posso responder.

“E você?”

“Solteiro. Quer dizer... sofri um divórcio. Tenho um filho pequeno, que vejo menos do que quero.”

“Sinto muito”, Ingrid repete o que eu disse, e põe seus dedos sobre os meus.

É Ingrid, em vez de mim, quem sugere irmos num recinto menos público.


***


Em seu leito, depois de desejos reprimidos sucumbirem num sexo terno, discorremos sobre nossos respectivos conúbios. Conto de Denise, e de como me deprime ver que, presumivelmente, perdeu o tino do que é direito e foi se unir logo com um pelego do rei. Ingrid estremece só de ouvir. Descreve, sem muitos pormenores, o momento desditoso em que o esposo foi pego por olheiros do governo, suspeito de ser um dissidente e de urdir complôs insurgentes. Isso simplesmente porque conservou o costume de escrever versinhos – líricos, inocentes – retendo o léxico pré-Veto, com símbolo proibido e tudo.

“Mergulhei nos licores e nos coquetéis”, diz Ingrid. “Deixei de ter interesse em tudo. Em viver. Em... sentir.”

“Te entendo bem. Foi como fiquei. Pelo efeito dos drinques, decerto. Creio, porém, que o encolhimento do léxico me tornou... inepto. Deixei de exprimir meus sentimentos por muito tempo. E isso me fez, consequentemente... sentir menos.”

O rosto de Ingrid contém expressões difíceis de ler, e me preocupo com o silêncio que se segue. Vejo, enfim, que pingos de choro escorrem de seus olhos. Depois de longos minutos, diz:

“Eu sou como você. E o que é pior: o único sentimento que experimento sempre é o de ter perdido... o meu próprio ser. Meus elementos únicos, exclusivos.”

“Você segue sendo um indivíduo único, Ingrid. Cem por cento único.”

“Eu sinto que deixei de ser mulher, Gregório. Que hoje só sou um ser do gênero feminino, como eles dizem. Tendo que proferir os termos ditos ‘neutros’ que o governo me impõe. Mesmo que sempre terminem em ‘O’. Estou esgot...”

Ingrid interrompe o termo no meio, percebendo o erro por um triz.

“Estou... estou...”

E, logo depois, se emudece. 

Dou-lhe um beijo doce e sinto o gosto do cloreto de sódio em seu rosto úmido. Seus membros superiores me envolvem. Podem ser impressões precoces, porém noto que sinto um quê de bem-querer – o que, inclusive, me surpreende.


***


O vício me persegue, bem como o remorso. Todo gole é delicioso e doído. Me controlo se estou perto de Ingrid, que me incute o desejo de ser um sujeito melhor. Com quem me sinto bem.

Com Pedrinho, contudo, sou menos prudente e tomo meu uísque num recipiente encoberto que finjo ser do líquido inodoro e insípido. Vemos juntos o futebol e tenho orgulho de ver que meu filho torce pelo meu clube com o mesmo fervor que eu, independente do desfecho ruim do jogo. Depois do término, porém, estou tonto e me irrito ouvindo ele dizer “genitor”.

Impulsivo, resolvo lhe expor um pouco de conhecimento.

“Em tempos remotos, filho, houve outro termo muito comum em vez de genitor. Só que esse termo, de três símbolos – P no começo, I no fim –, deixou de existir.”

Ele percebe que estou triste, sem entender por quê.

“O símbolo do meio”, continuo, “se tornou proibido. Você conhece o símbolo proibido?”

Sossegue, Gregório, ouço meu superego me dizendo no ouvido, e o ignoro.

Pedrinho, evidentemente, desconhece do que me refiro.

“É como um V, meu filho, só que invertido. E com um risco no meio. Desse jeito, ó”, e escrevo o símbolo com o dedo.

Ele segue confuso.

“Por que esse símbolo é proibido, genitor? É um gesto feio de se ver? Que nem erguer o dedo do meio?”

“Nem é isso, filho. É um símbolo bonito, que tem um som... como dizer? Desimpedido. Livre. Que requer que os músculos do rosto se estiquem num sorriso.”

“Como é esse som, genitor?”

E eu, sem refletir sobre os efeitos do que empreendo, lhe mostro.


***


Envolvido pelo toque de Ingrid sob os cobertores, tento exprimir o sentimento que levo no peito.

“Meu tesouro”, digo. “Eu... te quero bem.”

Seu sorriso é receoso, como se eu tivesse dito um impropério. 

“Te quero muito, muito bem”, emendo, e ouço um suspiro em retorno.

“Eu idem, meu querido”, diz Ingrid.

Seguimos um pouco tristonhos, envoltos um no outro, os dois com pleno conhecimento do que nos compunge. Estou sóbrio e, em tese, sem ter em mim o impulso inconsequente de ontem, com Pedrinho.

Porém, surpreso comigo mesmo, digo: “Eu te...”, e me pego escrevendo o símbolo proibido com o dedo, seguido de um M e de um O.

Recebo um beijo longo e me derreto vendo Ingrid repetir os mesmos gestos. Somos dois rebeldes, dois loucos, dividindo um sonho que deixou de ser quimérico.


***


Num primeiro momento, seguimos comedidos, usufruindo do novo recurso somente de tempos em tempos, e sempre sob os lençóis – pois conhecemos, de ouvir dizer, numerosos rumores de microfones e dispositivos fílmicos escondidos pelo governo em prédios e domicílios. Escrevendo com o dedo índice, remimos do limbo verbetes de todos os tipos – os simples, os eruditos, mesmo os obscenos –, que enchem nossos colóquios secretos de um colorido novo.

Depois, destemidos, servimo-nos de objetos obsoletos, como tinteiros e versos de folhetos velhos, e redigimos longos textos onde o símbolo ilícito é visto o tempo todo. O que Ingrid escreve, eu leio, decoro e queimo, e o mesmo é feito com o que eu ponho por escrito. Sentimo-nos cúmplices de um conluio perigoso; isso, porém, dificilmente impede que continuemos produzindo nossos votos mútuos de bem-querer. Esqueço o uísque, o vinho tinto, o gim: Ingrid me embevece e é tudo de que preciso.


***


Estou com Ingrid, concluindo outro texto enternecido, no momento em que vejo o nome e o número de Denise no telefone móvel.

“Gregório?!”

“Oi, Denise. Tudo bem? O que houve?”

“Gregório, o que você fez? Pelo glorioso senhor nosso rei, Gregório, o que é que você fez?!”

Ouvindo seus soluços, sinto um frio nos ossos.

“Ele levou o Pedrinho, Gregório...”

“Quem levou? Levou onde?”

“O Miguel. Levou o Pedrinho pro centro de correções juvenis. Depois que... depois que descobriu...”

Sinto enjoo. Vertigem. Meu peito dói.

“Descobriu o quê, Denise?...”

“Você ensinou o símbolo proibido pro nosso filho, Gregório?”

É nesse preciso momento que Ingrid, o rosto lívido, o corpo tremendo, ressurge no cômodo e diz que tem gente no corredor, insistindo em me ver.


***


O pé-direito tem somente dois metros, e o cheiro do recinto é bochornoso, opressivo. Tenho os olhos roxos e os ouvidos doloridos. O homem de uniforme preto e roxo que me presenteou com os ferimentos repete os mesmos pontos:

“O senhor conhece todos os preceitos e diretrizes de nosso reino?”

“Conheço.”

“Entende que o símbolo que utilizou em seus textos escritos é proibido em todo o território e que seu uso constitui crime hediondo?”

“Entendo.”

“Percebe que instruir o seu próprio filho sobre esse símbolo foi um erro irremissível, e que o Pedro, bem como todos os condiscípulos do colégio com quem ele dividiu esse conhecimento ilícito, devem ser reinstruídos num instituto exclusivo do governo, sem o convívio de genitores ou genetrizes, por doze ciclos em torno do sol? E que o delito do senhor, um equívoco intempestivo, sem propósito, constitui um rompimento de segredo régio por motivo torpe, o que é punido com o corretivo supremo?”

Fico silente, um zumbido contínuo me remoendo os ouvidos.

“Percebe, senhor Gregório?”

“Percebo”, digo, enfim, por entre os dentes.

“E o que o senhor diz de tudo isso? Compensou se converter num delinquente depois de dois vintênios e meio de tempo vivo?”

“Onde... onde posso ver Ingrid?”

Seu rosto presunçoso me infunde nojo, e fico inquieto com o seu silêncio.

De repente, sinto um horror profundo, um medo súbito de ter sido iludido desde o início. E se foi tudo um embuste? E se o bem-querer que Ingrid me inspirou, e que me fez infringir o Veto Lítero sem refletir sobre futuros efeitos lesivos, foi fingimento com o intuito de descobrir subversivos dormentes?

O milico, porém, me exibe fotos que desmentem o temor que meu cérebro construiu. Confirmo que nosso sentimento de bem-querer e respeito é recíproco. Porém, choro vendo seu rosto ferido, seus olhos túrgidos, e me sinto culposo por ter lhe provido esse suplício. O sujeito de uniforme se ergue e some. Fico sozinho, vertendo pingos irreprimíveis, me preenchendo de ódio.


***


Me olho no espelho. Meu rosto é outro, ossudo, rugoso. Longos pelos cinzentos descem do meu queixo; os fios do coco, uniformemente níveos, constituem um testemunho de como envelheci. Levo os efeitos dos últimos dez ou doze ciclos celestes por todo o corpo.

“Livre”, ouvi dos homens de uniforme. Livre, depois de evos como preso político, metido num cubículo sem luz, sem informes de entes queridos, sem que me dissessem um pio sobre o mundo exterior.

O tempo infinito me possibilitou conceber um multiverso de eventos possíveis. Supus meu filho com boné de coronel e uniforme régio, o cérebro poluído pelos professores de um instituto podre. Vi, com vívidos pormenores, Ingrid sob o solo do cemitério – ou pior, sofrendo dores inconcebíveis pelo corpo e mente, e perecendo por dentro sem morrer.

Nos momentos menos depressivos, pensei em futebol. Inventei um torneio hipotético em que meu time venceu todos os jogos com engenho e virtuosismo, empreendendo dribles incríveis e gols mil. Em tempo nenhum, contudo, desejei um gole de uísque que fosse; se virei prisioneiro dos homens, me livrei, enfim, do vício.

Hoje, surpreendentemente, eles me dizem que estou livre. Sempre me lembrei do que o homem de uniforme preto e roxo me contou sobre meus crimes, e sempre dormi os períodos noturnos com o pressentimento de sofrer o dito “corretivo supremo” depois que o sol surgisse de novo. Um decênio inteiro veio e se foi. E eu fiquei.

Deixo o presídio confuso, sem entender por que estou sendo solto, sem que me expliquem nicles.

E, de repente, vejo Denise. 

Denise e um homem de bigode, bem-vestido, com feições que reconheço. Tenente Miguel?, é o que penso primeiro.

Chego perto. É Pedrinho. Homem feito, crescido. E com um sorriso que me ergue o espírito.

Ouço dele, em vez de genitor, o belo e curto termo que tem P no início e I no fim. Ele me exibe livros – volumes novos, visivelmente recentes – repletos do símbolo proibido. Olho em meu redor e vejo os letreiros públicos, onde o mesmo símbolo é exposto sem nenhum pudor.

“O povo venceu”, Pedro me diz.

“E foi o Pedro que começou”, sorri Denise. “Ele e os outros meninos do instituto. Em virtude do que você fez, Gregório. O mérito é de todos vocês.”

Sinto um misto de choque, orgulho e deleite. Por fim, pergunto:

“E... e Ingrid?”

Pedro estende o dedo no sentido de um veículo inconspícuo. Pelo vidro, Ingrid me vê. Meu peito se converte em um bumbo doido e veloz. Corro com fôlego de jovem, Ingrid desce, seu corpo vem em meu rumo. Nosso beijo tem o mesmo gosto de outros tempos; nosso choro, o mesmo tom.

Pedro vem e, com meu filho junto de nós, me sinto pleno. De longe, vejo Denise feliz.

E o que ouço de mim mesmo contém um verbo que, junto com inúmeros outros, nos foi reprimido por um rei estúpido e seus seguidores doentes desde que o Veto Lítero teve efeito. Nem dizer “tenho imenso bem-querer por vocês”, nem escrever com os dedos: neste momento eterno, posso esquecer truques e eufemismos e exprimir o que sinto incluindo o som sublime do símbolo que hoje, de novo, precede o B.

26/12/2023

Novo microconto na área

Depois de ver três microcontos meus como parte da coletânea Micros, Uai!, foi a vez de outro microconto de minha autoria aparecer nas páginas de um livro: "Obituário", uma tragicomédia em 57 palavras, foi selecionado para a Coletânea de Microcontos 2023, da Editora Persona. 

O livro, que conta com uma penca de microcontos de autores de todo o Brasil, está disponível para compra no site da Editora Persona.

25/05/2023

Age of Asparagus


Percebi que tinha me adaptado às terras germânicas no dia em que me vi na fila do supermercado comprando um livrinho só com receitas de aspargos. 

Os alemães são absolutamente fissurados com aspargos. Quando chega a primavera, todos os restaurantes anunciam cardápios especiais só com receitas de aspargos, os supermercados os colocam em posição proeminente nas gôndolas e as buscas no Google por "Spargel" – como o vegetal é conhecido na língua de Goethe – atingem seu pico anual. No gráfico abaixo, compare com as pesquisas por "Kartoffel" (batata), outra notória paixão alemã. 


Parte do apelo é a sazonalidade: é um vegetal disponível por tempo limitado, coisa de dois meses apenas. Quando chega junho, acabou-se o que era aspargo, e depois só no ano que vem. E é tão popular que nem sempre a oferta dá conta da demanda. Outro dia mesmo deixei pra ir no supermercado às três da tarde e não tinha mais aspargos verdes. Certamente deve haver algum ditado alemão do tipo "Deus ajuda quem cedo madruga", mas usando aspargos como analogia.


Tanto os aspargos brancos quanto os verdes pertencem à mesma espécie, o Asparagus officinalis. Os brancos são os preferidos dos alemães, geralmente cozido e degustado com molho holandês (feito com manteiga e gema de ovo) e acompanhando um bom Schnitzel. Em 2021, o McDonald's alemão criou até um hambúrguer com aspargos brancos e molho holandês (que não deve ter feito sucesso, pois já saiu de linha). Acho que um pacotinho vermelho de fritas, com aspargos verdes no lugar das batatinhas, seria um méqui-petisco mais gostoso, mas enfim.


Os aspargos verdes são mais versáteis: dá pra refogar, cozinhar, assar, grelhar. E são mais fáceis de fazer do que os brancos, porque você não precisa descascá-los, só quebrar a ponta de baixo, mais dura e madeirosa. São os meus preferidos, não só pela conveniência, mas pelo sabor mesmo.

No Brasil dá até pra encontrar aspargos em alguns supermercados, mas é tipo um vegetal lado B, que muita gente nunca comeu. Uma vez, visitando Beagá, fui convidado para um churrasquinho e levei, todo contente, um punhado de aspargos verdes que achei no Verdemar. Teve gente que olhou e perguntou: "o que é isso?".

Daqui a poucas semanas os aspargos vão sumir das gôndolas, mas enquanto isso sigo aproveitando o Spargelzeit – "época dos aspargos" – em qualquer oportunidade. O livrinho de receitas que comprei há quatro anos, inclusive, já foi usado várias vezes, junto com receitas variadas da internet e improvisos caseiros. Olha aí alguns exemplos que não me deixam mentir:

Aspargos ao forno, enrolados em fatias de abobrinha e queijo fresco:


Aspargos com cuscuz e morangos:


Aspargos acompanhando um franguinho improvisado com tomates e cebolas:


Aspargos, ervilhas e outros legumes com tempero indiano acompanhando salmão:


Aspargos com salmão e purê de ervilhas:


Aspargos com almôndegas, sementes de romã e um creme que não lembro mais do que era feito:



22/05/2023

Uai, tô na antologia "Micros, Uai!"

A Editora Pangeia está lançando uma antologia de microcontos só de autores mineiros. 

Acabei sendo selecionado e estou entre os 86 microcontistas do livro, a ser lançado no dia 25/05. De cada autor entram 3 microcontos, cada um com até 333 caracteres – por acaso, o número exato de caracteres deste post.

Para comprar clique aqui, uai!


16/04/2023

Diário de um cozinheiro nível zero


Dia desses encontrei um registro que escrevi para mim mesmo no longínquo ano de 2011, quando morava na China, intitulado "Diário de um Cozinheiro Nível Zero". Devia ter sido alguma resolução de ano-novo ou a chegada iminente dos meus 26 anos (meu aniversário seria no dia seguinte), mas foi o dia em que decidi que não seria má ideia aprender a fazer ao menos uns ovos mexidos, e documentar a experiência para a posteridade. Pois a posteridade chegou, e resolvi compartilhar o texto aqui:

Domingo, 2 de janeiro de 2011

Depois de duas refeições consecutivas comendo miojo chinês, resolvi criar vergonha na cara e deixar de ser uma nulidade na cozinha. Vinte e seis anos nas costas e nunca fritei um ovo na vida. Minhas experiências culinárias se resumiam a preparar miojo, fritar hambúrguer e requentar a comida feita pela minha mãe. 

Fui ao Chaoshifa, supermercado que fica a um quarteirão da minha casa, e comprei ingredientes diversos: ovos, macarrão, massa de tomate, batatas, temperos. Sozinho e sem idéia de como pilotar um fogão, recorri ao Google. As gerações antigas tinham o manual da Dona Benta; eu tenho sites como How Cast e wikiHow. Fucei as páginas e resolvi que, nessa primeira aventura, me ateria aos ovos. 

A primeira tentativa foi um ovo frito. Na hora de quebrar, exagerei na força e espatifei a gema, impossibilitando um ovo frito bonitão, com clara e gema bem delimitadas. Esquentei a frigideira por mais tempo do que devia e, quando coloquei a manteiga, ela ficou marrom em questão de segundos. Desliguei o fogo, lavei a frigideira e comecei de novo. Fritei o ovo da gema espatifada e não ficou ruim, só não ficou bonitão. 

O estômago pedia mais e optei, dessa vez, por ovos mexidos. Quebrei dois ovos na tigela, dessa vez com mais sucesso. Adicionei sal, pimenta-do-reino e queijo derretido (peguei daqueles queijos em fatia que a gente põe no sanduíche e esquentei no microondas por alguns segundos. Pensando agora, é meio burrice derreter um queijo que vai encarar a frigideira logo em seguida, mas tudo bem). Bati a mistureba com garfo até ficar homogêneo, como mandavam as instruções na internet, e joguei na frigideira, mexendo com a espátula. Quando comecei a ver alguns pedaços empretecendo, desliguei. Não chegou a comprometer não: foram ovos mexidos até razoáveis, considerando minha fome e a completa falta de experiência.

Doze anos depois, tenho o prazer de reportar que já fritei múltiplos ovos, não como ovos queimados e tampouco derreto queijo no microondas para depois jogar na frigideira. 

05/04/2023

Fonobibliotecologia


Confesso que tinha um certo preconceitozinho contra os audiobooks. "Não é leitura de verdade", "É pra quem tem preguiça de ler" e coisas do tipo. Era, inclusive, uma baita duma hipocrisia, pois quando moleque eu gravava livros inteiros em fitas K7 – Manual do Super-Herói, Viagem ao Centro da Terra, Caçadas de Pedrinho – e até tinha minha própria locadora de "talk-books" (era assim que se chamavam nos anos 90), alugando fitas para os parentes mais generosos, como já contei faz tempo.

Em 2020, porém, ganhei uma assinatura do Audible de aniversário e resolvi experimentar. A ideia era aproveitar o "tempo morto" do dia a dia – indo e voltando do trabalho, lavando vasilhas, aspirando a casa – para aprender (ou simplesmente me entreter com) alguma coisa por via auricular. E acabei incorporando os audiobooks na lista de formatos em que consumo conteúdo, cuja última adição tinha sido o Kindle alguns anos antes.

Há períodos em que os deixo de lado em prol de outras trilhas sonoras para jornadas e atividades, como podcasts variados ou a boa e velha música, mas, como atualmente estou numa fase mais audiobúquica, andei matutando que o formato sonoro funciona até melhor para certos tipos de livros do que sua contraparte em caracteres romanos, ou pelo menos traz umas vantagens que a versão impressa não tem.

Por exemplo:


Livros onde a pronúncia das palavras é importante. Um bom exemplo é The Art of Language Invention, que mencionei no post anterior. Ser versado no alfabeto fonético internacional pode ajudar a saber que "Valar morghulis" não se diz "morgúlis", e sim "morrúlis", mas a melhor maneira de entender como palavras de grafia hermética (digamos, "M'athchomaroon" ou "Isalnœœlœ") são pronunciadas é mesmo ouvindo alguém falar.

 
Livros narrados pelo próprio autor. Isso, claro, se o autor for tão bom de papo quanto de texto. Mas escutar o próprio Dave Grohl narrando suas memórias em The Storyteller foi quase como passar umas horas tomando cerveja com ele e ouvindo seus causos de adolescência, de Nirvana, dos palcos da vida. Também é massa quando o autor empresta uma dramaticidade extra à leitura, como Stephen Fry ao narrar anedotas da mitologia grega em Mythos, que é difícil de replicar no texto impresso.

 
Livros em outro idioma para treinar a compreensão. Ouvir e entender uma língua pode ser mais complicado do que ler ou mesmo falar, e os audiobooks (assim como os podcasts) são uma boa pedida para treinar o seu inglês, espanhol, francês ou alto valiriano. Eu deveria seguir minha própria dica e escutar alguns livros em alemão, mas é aquela história, faça o que eu digo, não o que eu faço.

 
Livros com um grande elenco de vozes. Esses entram quase na categoria "audiodrama", mas são uma experiência interessante. O livro de Guerra Mundial Z (que não tem patavina a ver com o filme) é escrito como uma "história oral" de um conflito global contra uma legião de mortos-vivos, e cada capítulo é narrado por um personagem diferente. A versão em inglês para audiobook aproveitou para escalar um elenco de responsa, incluindo Simon Pegg, Mark Hamill, John Turturro, Alfred Molina, F. Murray Abraham e até Martin Scorsese (!), dando a impressão de se estar ouvindo um verdadeiro documentário de guerra.

 
Por outro lado, o meio visual continua imbatível para muitos outros tipos de conteúdo.

Há os exemplos óbvios – livros de referência, de fotografia, graphic novels etc –, mas mesmo livros de texto corrido que tenham ilustrações, diagramas ou tabelas são meio complicados como audiobook. Geralmente há um PDF acompanhando o arquivo de áudio e você pode consultá-lo quando quiser, mas é uma amolação ter que clicar no maldito PDF e achar o maldito diagrama mencionado pelo narrador, ainda mais quando você está lavando vasilhas e tem as mãos cheias de sabão. Não sei como são outros aplicativos, mas o Audible deixa a desejar quanto à usabilidade, e o PDF não é sequer otimizado para celular. 

(The Art of Language Invention, aliás, é um caso curioso: tem trechos que funcionam indiscutivelmente melhor como audiobook, como o capítulo sobre fonemas, e outros que só fazem sentido lendo, como a seção sobre sistemas de escrita.)
 
Se o livro é cheio de palavras complicadas, o melhor não é nem o livro impresso em celulose, mas um e-book como o Kindle, onde é só clicar no termo desconhecido para ver a definição. Em casos como Duna, que li ano passado, não consigo nem imaginar como seria ouvir o audiobook sem conhecer nada do universo criado por Frank Herbert: o livro tem zilhões de termos específicos, como Landsraad, Levenbrech e Kwisatz Haderach, que só consegui entender consultando o glossário de umas cinquenta páginas que vem no apêndice. Como nem tudo é perfeito, pra saber se a pronúncia certa é "Quisatz Raderatch" ou "Kvizáts Haderaque", só mesmo ouvindo o audiobook.

21/03/2023

Inventando línguas



Comecei a ouvir um audiobook bem interessante sobre o processo de criação de um idioma. O autor é o americano David J. Peterson, que tem no currículo uma porção de línguas que desenvolveu para Game of Thrones (incluindo Dothraki e Alto Valiriano), The Witcher, a nova versão de Duna e mais um monte de séries e filmes. Se nos tempos de J.R.R. Tolkien inventar idiomas era um hobby obscuro para poucos e raros nerds, hoje virou profissão (ok, para poucos e raros nerds) com o nome de conlanger – "con" de constructed, "lang" de language.

Meu primeiro experimento na invenção de uma língua foi o caninês, quando eu tinha uns oito ou nove anos e era fanático por cães. Tinha uma coleção de cachorros em miniatura, um livro sobre raças de cães, usava meu próprio cachorro (o saudoso Barão) como protagonista de minhas HQs caseiras e ouvia o CD da TV Colosso com mais frequência do que gostaria de admitir. Inspirado pelas aulas de inglês que fazia no Number One ("Aqui o seu futuro fala inglês", dizia o slogan na época) e como bom pequeno nerd, tive a ideia de desenvolver um idioma canino.

Fiz um livro-texto, digitado no WordPerfect para MS-DOS que era então meu processador de texto predileto, incluindo gramática básica, conjugação verbal, lista de substantivos e adjetivos. E cheguei até a dar aulas. A classe tinha uma só aluna: minha mãe, a única pessoa no mundo que toparia embarcar de bom grado numa ideia esdrúxula dessas. Já faz tempo que perdi minha fluência em caninês e agora, de cabeça, só lembro de uma frase – "Au grau au-aug" –, cujo significado também me foge à memória. Se tivesse focado no elefantês em vez do caninês, talvez ainda me lembrasse.

Ainda nessa vibe canina, lembro de criar o Linguosso dosso Osso, um pseudo-idioma em que todas as palavras terminavam em "osso". A tradução da frase mais famosa de Descartes, por exemplo, ficaria assim: "Pensosso, logosso existosso". Definitivamente, eu passava tempo demais assistindo à TV Colosso. Já pelos idos de 2002 ou 2003, em algum momento ocioso entre o terceiro ano e o início da faculdade, comecei a trabalhar num idioma novo e revolucionário em parceria com meu chapa Adriano Domeniconi. Não passamos do conceito básico, alguns fonemas e letras para o alfabeto próprio (uma era formada por três pontinhos em estrutura triangular; outra, uma representação gráfica de um nariz de porco). Vou me esquivar de dar mais detalhes porque agora, vinte anos depois, estou ressuscitando essa língua no romance de fantasia/comédia/road-trip que venho escrevendo desde 2019.


Foi por isso, aliás, que comecei a ouvir o audiobook de David J. Peterson. Ia falar mais a respeito e acabei me embrenhando por memórias de infância, mas fica aí o nome se você quiser ler ou ouvir também: The Art of Language Invention: From Horse-Lords to Dark Elves to Sand Worms, the Words Behind World-Building. Parece que ainda não tem tradução para o português. Tampouco em Dothraki, Klingon ou Na'vi. Se um dia a HBO comprar os direitos do meu livro para fazer uma série, tomara que contratem o David para dar um tapa no meu idioma inventado. Quem sabe, como o Alto Valiriano e o Klingon, ele não acabe até no Duolingo?

04/09/2022

A inesperada explicação para o Garoto Manteiga


Nos tempos áureos da MTV Brasil, quando só saía um Acústico por ano e o VMB era o evento mais comentado do ano no recreio do colégio, eles exibiam uma vinheta animada durante a programação que estrelava um certo Garoto Enxaqueca. Era um menino estressado e mal-humorado, que se irritava com tudo e todos e cujos episódios – em preto-e-branco e traços simples – não duravam mais do que poucos segundos.

A esquete mais memorável do Garoto Enxaqueca, no entanto, não trazia o personagem-título. Uma outra criança aparecia em cena, gritando pelo amiguinho:

– Garoto Enxaqueca! U-uuuu! Garoto Enxaqueca!

Mas quem entrava em cena não era o Garoto Enxaqueca, com seu semblante impaciente e monocelha zangada, mas um personagem diferente, com cara de homem velho, lambendo com uma língua asquerosamente enorme o que parecia ser não um picolé, mas um alimento em forma de paralelepípedo.

O garotinho, claramente confuso, dizia:

– Quem é você? Eu tava chamando o Garoto Enxaqueca!

E, entre uma lambidela e outra, o sujeito respondia:

– Desculpe. Eu pensei ter ouvido “Garoto Manteiga”. 

Fim.


Era uma vinheta memorável não só porque a reprisavam à exaustão a cada intervalo de Teleguiado, Top 20 Brasil e Barraco MTV, mas pelo humor completamente nonsense. O Garoto Manteiga não era sequer um garoto, mas um marmanjo com cara de cinquentão e calvície proeminente. E a palavra “enxaqueca” não rimava e tampouco soava como “manteiga”, nem com a mais generosa boa vontade.

Uma explicação, quem sabe, fosse que sua idade avantajada trouxesse um problema de surdez que o fizesse confundir duas palavras tão díspares. Embora, do alto dos nossos doze anos, acho que a gente ria mesmo simplesmente porque era um troço avulso. Nem passava pelas nossas cabeças ginasiais que talvez o Garoto Enxaqueca não fosse criação brasileira, e que algo tivesse se perdido na tradução.

Na minha memória afetiva, 1997 foi o auge da MTV brazuca. Numa era pré-internet (e, mais importante, pré-Napster), o canal 29 era a principal fonte de descobertas musicais para quem queria ir além do que passava no Domingão do Faustão. Eu acompanhava o Disk MTV todo fim de tarde e gostava de quase tudo que tocavam por ali, desde os clipes mais recentes das minhas bandas favoritas de então – Raimundos, Green Day, Skank, Planet Hemp – até one-hit wonders esquecidos tipo Maria do Relento ("Conhece o Mário?"), Lagoa ("Revista de Mulher Pelada") e os então onipresentes Virgulóides. Cheguei a fazer até uma versão caseira do VMB durante um aniversário de família, pedindo que os convidados votassem em suas bandas favoritas, apresentando os vencedores no final da festa e registrando tudo em VHS.

Dia desses, eu estava com uma ligeira dor de cabeça e me peguei pensando na sonora palavra “enxaqueca”. Imediatamente me lembrei do bom e velho Garoto Enxaqueca e bateu a curiosidade de jogar seu nome no Google. E aí descobri que ele não era criação da MTV Brasil coisa nenhuma, mas obra de um cartunista norte-americano, Greg Fiering, e que seu nome original era Migraine Boy. “Migraine”, no caso, é a palavra inglesa para “enxaqueca”, portanto era uma tradução ao pé da letra.


Mas peraí, disse meu cérebro. Se a versão original era em inglês, e aquela piada do Garoto Manteiga? Em português, a conexão entre “enxaqueca” com “manteiga” já era extremamente forçada e só funcionava se o foco fosse no “ê” como núcleo da sílaba tônica. Entre “Migraine Boy” e “Butter Boy”, a semelhança era nula. Talvez a piada fosse ainda mais avulsa do que pensávamos?

Uma busca rápida no YouTube me revelou uma compilação de esquetes do Garoto Enxaqueca. E lá estava, aos 5 minutos e 3 segundos, a vinheta clássica da minha pré-adolescência. 

Migraine Boy! Yoo-hooo! Migraine Boy”, dizia o garotinho. (A pronúncia de migraine, a propósito, é “mái-grêin”.)

Yes?”, dizia o semi-calvo lambedor de manteiga. 

Who are you? I was yelling for Migraine Boy”, explicava o guri.

I’m sorry”, respondia o marmanjo. “I thought you were yelling ‘Margarine Boy’”.

Então era isso. Vinte e cinco anos depois, finalmente descobri que o Garoto Manteiga era, na verdade, o Garoto Margarina. “Margarine”, claro, guarda uma similaridade sonora muito maior com migraine do que seus correspondentes no idioma de Sabrina Parlatore. Quem diria: a piada tinha sentido. Me senti como quando me explicaram que o codinome do pastor alemão do filme K-9 - Um Policial Bom Pra Cachorro não se pronunciava "ká-nove", e sim "kay-nine" (um trocadilho com "canine"). Envelhecendo e aprendendo.

Hoje em dia, não sei nem que fim levou a MTV Brasil. Disseram que tinha acabado, depois voltado, mas não ouço ninguém mencioná-la há pelo menos uns dez anos. Toda a influência cultural que o canal tinha, botando bordões de Hermes & Renato na boca do povo e gravações de Acústicos nas paradas de sucessos, ficou lá atrás, na década retrasada.

A última vez que ouvi falar do meu antigo canal favorito foi em 2011, quando encontrei Cazé Peçanha vestido de saci-pererê no metrô de Beijing (tenho ibagens e um relato completo). Inclusive, Cazé me entrevistou rapidamente na ocasião – uma festa a fantasia improvisada no metrô pequinês –, e depois várias pessoas vieram me dizer que me viram nas chamadas do programa que mostravam o VJ explorando a China. 

Eu mesmo nunca cheguei a ver, porque, afinal, estava morando na China. Mas até hoje me bate uma saudade de ligar a TV no 29 pra assistir ao Rock & Gol, ver o João Gordo esculhambar alguém ou conferir se o clipe novo do Offspring venceu o Top 20 deste sábado.

04/10/2021

Livro novo: Cinema-Múndi - Uma viagem pelo planeta através da sétima arte



Tem livro novo no pedaço, de autoria deste que vos escreve. Desta vez não é um volume de celulose e átomos como A Saga de Tião, mas um livro digital para comprar pela Amazon e ler no Kindle, se você tiver um. Se não tiver, joga no Gúgou "como ler no Kindle pelo celular", que a internet está aí é pra te ajudar.

Cinema-Múndi - Uma viagem pelo planeta através da sétima arte é um projeto antigo que nasceu como coluna no Cinema de Buteco (com o nome "Buteco Pelo Mundo" e 5 artigos publicados entre 2014 e 2019), foi interrompido várias vezes e finalmente retomado pra valer durante a pandemia. 

Agora posso riscá-lo da minha extensa lista de projetos inacabados, e você pode comprá-lo, ler e viajar pelo mundo através do cinema. 


Mais especificamente, você encontra em Cinema-Múndi:

  • Oito capítulos sobre lugares tão diversos quanto Moçambique, Arábia Saudita e Coreia do Norte e os filmes que são feitos por lá, incluindo histórias reais de bastidores que parecem saídas da ficção
  • Uma capa supimpa do meu chapa Daniel de Pinho
  • Uma revisão minuciosa da super Graciela Paciência
  • Mapas exclusivos da cientista alemã Anne Gädeke
  • Filmografia completa e onde assistir vários filmes mencionados
Para saber mais, tem noventa minutos de papo no podcast/live/Roda-Viva que participei com os ilustres Tullio Dias, Graciela Paciência, Carvalho de Mendonça e Marcelo Seabra no canal do Cinema de Buteco.

Lista de capítulos de Cinema-Múndi:

  1. 🇲🇹 MALTA: A mini-Hollywood do Mediterrâneo navega por águas inexploradas
  2. 🇸🇷 SURINAME: Nosso vizinho desconhecido e multicultural
  3. 🇰🇵 COREIA DO NORTE: A dinastia Kim tenta dominar a sétima arte
  4. 🇲🇿 MOÇAMBIQUE: Memórias de uma guerra que teima em não acabar
  5. 🇵🇬 PAPUA-NOVA GUINÉ: Rambos perdidos longe do paraíso
  6. 🇱🇦 LAOS: Desafiando a censura no país mais bombardeado do mundo
  7. 🇸🇦 ARÁBIA SAUDITA: Era uma vez um reino sem cinemas
  8. 🇦🇶 ANTÁRTIDA: O fim do mundo tem nome e endereço

11/07/2021

A praia alemã


A força da natureza que rege a praia alemã não é o sol, mas o vento. Mesmo no verão, o sol pode ser meio arisco, e vê-lo aparecer por quatro ou cinco dias consecutivos é tão fácil quanto ganhar na loteria: no litoral do mar Báltico, há mais nuvens entre o céu e a areia do que sonha a nossa vã meteorologia.

O vento, em contrapartida, está sempre soprando de algum lado. É por isso que se veem poucas sombrinhas fincadas na areia: voariam longe no primeiro vendaval. Em seu lugar, o alemão inventou a tal da Strandkorb – literalmente, “cesta de praia” –, mobiliário onipresente nas areias germânicas.

A Strandkorb é uma cadeira de vime, com espaço para duas pessoas, que lembra uma carruagem. É fechada dos lados e em cima, protegendo contra ventanias, pés-d’água, insolações e demais intempéries. Dá pra reclinar o encosto e puxar uma gavetinha acolchoada para esticar as canelas, e todas vêm com um indispensável porta-copos para repousar a cerveja. É praticamente uma instituição alemã, com um design que data do século 19 e pouco mudou desde então. Na Wikipédia descobri um videozinho, feito provavelmente por um orgulhoso alemão, mostrando as diversas funcionalidades desse símbolo teutônico:


Ocupar uma Strandkorb não sai de graça e a taxa de locação tampouco é irrisória: você morre nuns quatorze euros para curtir sua cestinha privativa por um dia. Tem gente que aluga por uma semana inteira, trancando a sua com chave ao fim da tarde e guardando ali as tralhas praianas que não quer carregar de volta pro hotel. Dentro da cesta, adultos e idosos passam o dia lendo romances policiais e tabloides sobre celebridades regionais, fazendo sudoku e palavras cruzadas, fumando e tomando coquetéis em copo de plástico.


Nem todo mundo fica trancafiado numa Strandkorb – até porque elas são disputadas e pode ser difícil conseguir a sua. Há quem simplesmente estenda uma toalha para um bronzeado, se o sol for camarada e resolver surgir; há quem improvise e espete um guarda-chuva comum na areia; há quem traga sua barraca de camping e há ainda aqueles que montam uma espécie de cercadinho de lona, que também bloqueia o vento lateral e garante uma privacidade extra. 


Apesar do vento, o mar é manso e quase sem ondas. Há barquinhos velejando, mas nada de surfistas. As praias bálticas são de areia, como as brazucas, e por isso a água do mar é turva, certamente frustrando as crianças que mergulham com seus mini-snorkels tentando ver algum peixinho. Eu sempre achava que dizer “praia de areia” era redundância, mas no litoral do sul da Europa, em países como Grécia ou Croácia, há muitas praias de pedrinhas, que oferecem uma experiência bem distinta: por um lado, quem caminha sem chinelo arrisca esfolar o pé; por outro, a ausência de areia torna a água límpida, como se você estivesse num aquário gigante. Não é o caso do arenoso litoral do Báltico – que, entretanto, permite engenhosos castelinhos e esportes como o frescobol (não, não é uma exclusividade brasileira) e o vôlei de praia.


Na praia têxtil, a vestimenta é o padrão praiano – biquínis e maiôs, sungas e bermudões. Sim, eu disse “praia têxtil”, pois foi esse nome mesmo que vi numa plaquinha na orla, indicando o segmento à beira-mar onde os humanos devem cobrir suas partes íntimas. Uma setinha para o lado apontava a praia nudista, onde se pratica o FKK (sigla para Freikörperkultur, ou “cultura do corpo livre”, como o naturismo é conhecido em terras germânicas; é bastante popular, inclusive). Há ainda uma certa Hunde-Strand, a praia para cães, que presumidamente também a frequentam com o corpo livre.


Mas quem realmente toma conta da praia alemã são as gaivotas – mais especificamente, as gaivotas-prateadas, ou Larus argentatus, uma espécie que abunda nos litorais do hemisfério norte. Sempre famintas, elas sobrevoam a areia e também perambulam a pé, fuçando sem inibição os pertences de quem sai para um banho de mar e deixa pra trás as toalhas e bolsas. As mais abusadas atacam os humanos diretamente: presenciei uma senhorinha, que andava tranquila com o sorvete de casquinha que acabara de comprar, ter um naco do sorvete arrancado por uma gaivota gatuna que deu um rasante e foi-se embora satisfeita. Não sei se as gaivotas têm algum apreço especial por sorvete, mas devem comer qualquer coisa que for fácil de pescar.
 

Na praia alemã não tem água de coco, mas tem caipirinha. Invariavelmente ela é preparada com Pitú, aquela cachaça que custa 5 vezes mais na Alemanha do que no Brasil. Há também outros clássicos litorâneos como Piña Colada, Sex on the Beach e Tequila Sunrise, além de coquetéis tradicionais do verão europeu como o alaranjado Aperol Spritz. Cerveja, claro, se encontra fácil, mas há que se ter cuidado: numa barraca menos honesta, nos venderam uma garrafa que não tinha estado nem cinco minutos na geladeira e estava mais quente que a água do mar.

Em termos alimentícios, você encontra os quitutes padrão que se vende em qualquer Biergarten alemão, como pães com salsicha em diversas cores e variedades, porções de fritas e panquecas de batata (a célebre Kartoffelpuffer) com recheios de salmão defumado, arenque ou purê de maçã. Mas o mais comum é comprar um Fischbrötchen, ou “pãozinho com peixe”, um sanduíche típico dessa região do globo.

Comprei um que continha salmão defumado, alface, pepino, pimentão e cebola e saí caminhando com ele nas mãos, despreocupado e contente. De repente, ouvi um zunido bem próximo do ouvido e foi por pouco que uma gaivota não me afanou o sanduba recém-comprado das mãos. Olhei pra cima e me senti num filme de Hitchcock, mirado por aves que sobrevoavam minha cabeça, provavelmente lambendo os beiços ao ver aquele salmão suculento dando sopa na mão de um brasileiro ingênuo. Tive que voltar correndo à minha Strandkorb e me esconder sob o telhado de vime para comer o meu sanduíche de peixe em paz. E descobri mais uma das mil utilidades da Strandkorb, que é proteger a gente de ser caçado pelos pássaros.

24/05/2021

Conto novo na Faísca: "Fora de circulação"


Uma coisa que eu não vejo ninguém comentando é como está difícil a vida de vampiro nestes tempos de pandemia. Por isso, escrevi uma ficção relâmpago (S.f. do inglês flash fiction: um conto com menos de mil palavras) sobre o assunto, que foi publicada hoje na Faísca, a newsletter da revista literária Mafagafo

Para ler meu conto "Fora de circulação", é só acessar o arquivo da Faísca de hoje (episódio 38 da terceira temporada) diretamente neste link

Aproveite para assinar a Faísca, que toda segunda-feira envia dois contos curtos, com foco em fantasia, ficção científica e às vezes uma pitada de humor, para a sua caixa de entrada. Você pode navegar pelas faíscas dos últimos meses aqui

Para quem curte escrever, fique de olho nos editais da Faísca, que aparecem uma ou duas vezes por ano à cata de textos para a temporada seguinte da newsletter. O próximo abre em setembro.

08/05/2021

Ferramentas para escrever: meu top 8


Antes do nosso primeiro computador chegar lá em casa – um 386 de 17 megahertz que rodava o novíssimo Windows 3.1 –, eu datilografava na máquina de escrever dos meus pais, uma Olivetti avermelhada que nem essa aí da foto. Não lembro que tipo de literatura saía dos meus dedos infantis que catavam milho nesse objeto antediluviano e fascinante, mas provavelmente havia ali uma historinha ou outra protagonizada pelo meu cachorro e quiçá alguma carta ao Xou da Xuxa pedindo que ela passasse mais Thundercats.

Três décadas depois, continuo escrevendo num teclado QWERTY, agora num computador portátil de tela colorida que deixaria o meu eu de 1992 bestificado com o futuro sci-fi que estava à sua espera. E resolvi listar as que, hoje, são as minhas ferramentas favoritas para escrever. Daqui a uns 10 anos, provavelmente vou reler este post e pensar "cacilda, era isso que eu usava?", porque as coisas mudam rápido. Afinal, há pouco mais de uma década eu ainda carregava um Nokia 5120 no bolso.

A lista inclui, principalmente, sites e aplicativos para desktop e celular. (Nenhum é fabricado pela Olivetti – que, a propósito, ainda existe.)

***

Para anotações, ideias e lista de tarefas: Workflowy

Ao longo dos anos, já usei de tudo para anotar ideias, pendências e todo tipo de lembretes e rascunhos, incluindo cadernos e agendas, post-its, Bloco de Notas do Windows, Google Keep, Samsung Notes e vários outros apps parecidos, e-mails para mim mesmo e por aí vai. 

O resultado era invariavelmente o mesmo: um monte de ideias jogadas e nunca mais revistas, sem falar nas tantas que foram perdidas depois que troquei de celular, o HD deu pau, o caderninho sumiu. 

Foi com muita empolgação que descobri o Workflowy (nome péssimo, mas releve) em 2019. Sua simplicidade é seu maior trunfo: ele é basicamente um app para listas estilo "bullet points", sem fontes diversas, cores malucas ou nenhuma distração estilística. 

Mas esses bullet points escondem um efeito Inception que é poderoso e versátil. Cada bullet pode conter "sub-bullets", que podem conter "sub-sub-bullets", e assim por diante, ao infinito e além. 

Cada item também pode se tornar essencialmente um documento próprio, bastando clicar nele. Por exemplo: na captura de tela abaixo está o meu brainstorm inicial para este post. Veja que no item "Workflowy", a bolinha tem um contorno cinza, indicando que há algo ali por baixo. 


Clicando na bolinha, você vê os sub-itens que pertencem àquele item, tornando muito mais fácil focar apenas no que você está escrevendo ou delineando no momento:


Já faz 2 anos que uso o Workflowy praticamente todo dia, não só para os projetos pessoais como este blog, mas para gerenciar listas de tarefas no trabalho, guardar links de artigos que quero ler, dicas de restaurantes, ideias para músicas e contos, filmes que vi e preciso logar no meu Letterboxd, e muito mais. Para escrever, ele é perfeito para esboçar o esqueleto de um texto ou um capítulo. 

Vantagens: simples e eficaz. Fica na nuvem e sincroniza com todos os dispositivos. Cheio de atalhos de teclado que o tornam rápido de usar. É muito fácil mudar um bullet point de lugar (por exemplo, para trocar a ordem dos itens ou transformar um sub-item num item principal). Design minimalista que ajuda a focar na tarefa, e não na formatação.

Poréns: a versão grátis só dá direito a 250 "bullet points" por mês (a versão paga custa 4 dólares por mês e tem bullets ilimitados; recomendo).

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Para escrever: Google Docs

Já passei por diversos processadores de texto, incluindo o jurássico WordPerfect (dos tempos de MS-DOS que não voltam nunca mais), o onipresente Microsoft Word e suas variações genéricas do OpenOffice. 


O Google Docs (ou "Documentos Google", em bom pt-BR) é atualmente o meu preferido. Em termos de recursos de texto, não é muito diferente do Word: tem contagem de palavras, verificador ortográfico, dá pra sublinhar e italicizar. Mas duas vantagens, pra mim, são essenciais:

1. O fato de o documento morar na nuvem, poder ser acessado de qualquer aparelho e salvar automaticamente a cada poucos segundos. Pra quem já perdeu tantos escritos por causa de queda de luz, HD queimado, vírus de Windows e cousas do tipo, só isso já foi motivo suficiente para eu finalmente aposentar Word e OpenOffice e passar a escrever tudo no Google Docs.

2. As ferramentas colaborativas. Usando o Word, mandar um arquivo para alguém resulta numa cópia quando a pessoa o envia de volta, e de repente você se vê com cinquenta arquivos entulhando o HD com o mesmo texto em estágios variados. O Google Docs acabou com isso: o documento é único, as pessoas podem deixar comentários em trechos específicos e o histórico de mudanças também continua disponível – dá pra voltar no tempo e ver quem editou o quê e quando.

Poréns, porque sempre tem algum: os arquivos longos, com mais de 100 páginas, ficam mais lentos para trabalhar. E escrever offline é possível, mas há que se ter cuidado para não fechar a aba antes que a internet volte e o texto sincronize com a nuvem.

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Para conferir a ortografia: Dicionário Priberam

Quando moleque eu usava o Aurélio, onde descobri o significado da palavra biselho. Adolescente, migrei para o ainda mais trambolhoso Houaiss, onde aprendi que a maior palavra da língua portuguesa não era inconstitucionalissimamente, mas pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico. 

Hoje não costumo mais folhear páginas de dicionários aleatoriamente, mas quando preciso conferir alguma ortografia ou definição específica, utilizo o Priberam


Vantagens: dá pra escolher entre a norma brasileira e a portuguesa, e também entre a grafia pré- e pós-reforma. Se você é como eu e 99% dos brasileiros e ainda não reaprendeu a hifenizar as palavras direito, é sempre bom dar uma olhada. Outra vantagem é que dá pra pesquisar nas definições (por exemplo: você busca por "ornitorrinco" e encontra verbetes como "monotrêmato" e "monotremado").

Desvantagens: a definição deles para "biselho" não é legal como a do Aurélio.

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Para encontrar sinônimos: Sinônimos.com.br

Durante a revisão do texto, quando você começa a notar vícios de linguagem e palavras que se repetem mais do que deveriam, é uma mão na roda usar um dicionário de sinônimos. Este aqui é basicão mas completo, e cumpre bem o propósito. 


Abaixo da caixa de busca do Sinônimos.com.br, também há links para outros sites úteis como seu irmão gêmeo malvado – o Antônimos.com.br – e seu primo Conjugação.com.br (porque ninguém é obrigado a saber de cor todas as 70 variações do verbo advir).

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Para focar (I): Marinara - Pomodoro Assistant

Ah, as distrações da contemporaneidade. A principal, geralmente, é a gente mesmo e a nossa vontade irresistível de checar o celular, as notícias, os e-mails, o Instagram, o Twitter. Ou de fazer uma "rápida pesquisa" na Wikipédia, e quando você vê já está aprendendo tudo sobre temas avulsos como os ursos-beiçudos (sabia que o Balu, de Mogli, era um urso-beiçudo? descobri agora), menos fazendo o que você se propôs a fazer, que é finalmente terminar aquele artigo/capítulo/textão que não termina nunca.

O que eu uso diariamente para focar, já faz 1 ano e meio, é a técnica dos "pomodoros": você coloca um timer de 25 minutos e se concentra na tarefa até o alarme soar; aí faz um descanso rápido e recomeça. Vinte e cinco minutos passam rápido e é mais fácil resistir à tentação de se distrair. Neste exato momento, por exemplo, vejo que faltam 8 minutos para terminar meu pomodoro atual, então dá tempo de escrever mais um ou dois parágrafos.

Há zilhares de "pomodoro timers" pela web afora, incluindo sites, vídeos no YouTube com 25 minutos de duração e outras variantes. Você também pode simplesmente usar o cronômetro do seu celular ou ativar um alarme no rádio-relógio de sua preferência. Não recomendo ampulhetas porque elas carecem de som e a duração não é muito confiável (esta ampulheta bonitona, por exemplo, promete 25 minutos – mas um comprador mediu e só encontrou 24'15").

Eu gosto de usar esse Marinara: Pomodoro Assistant porque é uma extensão pro Google Chrome: você instala, só precisa de um clique para acionar e sabe imediatamente quantos minutos ainda tem antes da próxima pausa. Há várias outros plug-ins parecidos para Chrome, Firefox, Safari etc, mas em timer que está ganhando eu não mexo.

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Para focar (II): Spotify

Além do pomodoro, minha outra ferramenta indispensável para manter o foco ao escrever é a trilha sonora certa, que ajuda a bloquear as distrações auditivas e a dar o tom adequado para a escrita.

Fui montando minha trilha ao longo dos anos: se antes eu escrevia com qualquer roquenrôu que me apetecesse, passei depois a preferir músicas instrumentais em tons menores, pendendo aos temas minimalistas, ligeiramente eletrônicos e algo repetitivos, que distraem menos. 

Trilhas de filmes mais recentes se encaixam perfeitamente nessa vibe. Entre meus favoritos estão Trent Reznor & Atticus Ross (e suas trilhas para A Rede Social, Garota Exemplar, o seriado Watchmen da HBO e os álbuns da série Ghosts do Nine Inch Nails), Hans Zimmer (Interestelar, X-Men, Cavaleiro das Trevas), Danny Elfman (A Garota do Trem), Clint Mansell (Lunar, Filth), Hildur Guðnadóttir (Joker) e mais um monte: minha playlist atual, com o nome nada inventivo de "Writing 2", tem mais de 37 horas e pra lá de 600 músicas, que geralmente ouço em modo shuffle.

Os serviços de streaming de música são todos meio parecidos, mas estou satisfeito com o Ispotifái, que assino desde 2014 (a versão grátis é cheia de propagandas, o que não é lá muito conducente para o foco absoluto). 

Se você não quiser criar a sua playlist customizada, há trocentas prontas dentro do gênero "Foco", que passeiam da música clássica até o electro minimal e os sons campestres de grilos cricrilando, se for a sua praia.

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Para escrever todo dia: HabitBull

Não adianta muito se a gente escolhe o processador de texto ideal, os dicionários mais completos, a música perfeita, e só senta pra escrever de quando em nunca e depois dali a seis meses.

Em 2019, resolvi tentar remediar a procrastinatite crônica usando uma técnica que o comediante Jerry Seinfeld popularizou. É simplíssima: você pega um calendário e marca um X em todos os dias nos quais escreveu o seu mínimo – seja esse mínimo uma página, um parágrafo ou, no caso de Seinfeld, uma piada. O objetivo é "não quebrar a corrente", ou seja, não deixar nenhum dia do calendário com um X faltando. 


Resolvi testar a técnica seinfeldiana em fevereiro de 2019, quando me prometi escrever por 10 minutos por dia, todo dia. Em novembro do mesmo ano, elevei o mínimo diário para 1 pomodoro, ou 25 minutos. Já são 827 dias consecutivos escrevendo um pouquinho – geralmente de manhã, antes do trabalho – e finalmente concluindo ou avançando em projetos antigos para os quais nunca conseguia "encontrar tempo". Recomendo essa técnica veementemente pra qualquer um com um projeto pessoal que adoraria realizar ou concluir, mas que as outras mil coisas da vida insistem em atravancar.

Em vez de calendariozão na parede e caneta hidrocor vermelha, baixei um app, o HabitBull, que me manda uma notificação todo dia perguntando "e aí, já escreveu hoje?". Essa maldita notificação, que insisto em não apagar até completar meu pomodoro diário, foi responsável por eu passar umas 150 horas escrevendo nos últimos dois anos.

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Para espairecer: papel e caneta

Nunca abandonei o papel e a caneta por completo. Tem alguma coisa de mágico, e talvez de nostálgico, com esses dispositivos de baixa tecnologia. Parece que as palavras adquirem um peso extra, uma importância maior, como se cada rabisco fosse um registro histórico, inapagável, por mais inlapidado seja o seu conteúdo. Mas, ultimamente, com Workflowy, Google Docs e o escambau supracitado, eu andava meio afastado da escrita analógica.


Nas minhas últimas férias, porém, resoluto em continuar meu "pomodoro diário" sem pular um dia, e também decidido a não levar o laptop para não ficar grudado na telinha como no cotidiano do trabalho, comprei um caderno espiral, levei uma clássica Bic e escrevi à mão – ideias, parágrafos soltos e o primeiro rascunho de um conto que permanece incompleto. Foi bom para dar um break na rotina, desanuviar o cérebro e exercitar a minha caligrafia, que já era garranchuda e não melhorou nem um pouco com a falta de prática. 

No dia a dia, ainda é mais conveniente continuar teclando computadorizadamente e não me vejo migrando de volta para o papel pautado, mas de vez em quando é muito bom usar tinta e celulose para espairecer. 

Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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