Depois da última coelhada
Noite no supermercado quase vazio. Ela faz as compras para o fim-de-semana, empurra o carrinho com calma, olha a validade da manteiga. Está nisso quando ouve a voz no fim do corredor, dirigida a um funcionário:
- Qual é o pleço desse macalão?
O funcionário tenta segurar o riso. Não consegue, pede desculpas.
- Eh... três e oitenta e nove.
- Bligado - diz o homem, entristecido.
Ela mal acredita no que vê. Debaixo daquele chapéu e da barba por fazer, as semelhanças são tremendas. O timbre da voz é outro, claro, mas as peculiaríssimas nuanças no jeito de falar são idênticas. Ela só precisa tirar a prova. Aproxima-se devagar, com o carrinho. Ele continua envolvido com os preços das massas, não consegue se decidir entre o macarrão e o ravióli. Vendo mais de perto, ela fica em dúvida se é ele mesmo. Vai ser ridículo se não for, ainda mais se chamá-lo pelo apelido de infância.
- Ce... – começa ela, e pára no meio. O mesmo funcionário volta pelo corredor e ela aproveita pra disfarçar - Ce... senhor?
- Sim?
- Você sabe onde fica a seção de... cebolinhas?
O homem olha instintivamente. Pra ela é uma confirmação. Ignora o funcionário e suas indicações, e vai falar com ele, agora firme.
- Cebolinha?
Ele ri, assim sem jeito.
- Sou eu...
- Nossa. Cebolinha. Faz o quê, uns trinta anos?
O sorriso tímido dele permanece. Obviamente não a está reconhecendo. Força a memória. Principalmente porque, para uma mulher como aquela vir falar espontaneamente com um homem como ele, só sendo antiga conhecida mesmo.
- Eu... desculpa, eu não sei. Você...
- Cebolinha, Cebolinha. Vai dizer que esqueceu aquela que cê tanto enchia o saco quando a gente era criança?
Agora é ele quem mal acredita. Ela está agora tão alta quanto ele, tem os dentes perfeitos, e passa longe de qualquer sinal de obesidade. Mas é ela.
- Mônica? – balbucia.
Ela sorri.
- Faz tempo, não faz?
- Puxa vida. Muito tempo mesmo. Você tá... difelente...
Ela sorri mais ainda.
- Pode falar. Um corpinho invejável pra alguém com quase quarenta, né?
Ele não fala nada. Só pensa. Quando fala, é dos dentes.
- Pelo visto, não posso mais te chamar de dentuça...
- É. Oito anos de aparelho, meu caro. Oito longos anos.
- Ah, valeu o saclifício, né? Eu, pol outlo lado...
Ele tira o chapéu e mostra pra ela. Lisinha, lisinha.
- O último fio caiu faz dois anos – ele ri, decepcionado.
- Ah, não é possível. Você manteve um fio na cabeça? Um fio, Cebolinha?
- Quê isso, maiol olgulho aquele fio...
- Haha. Mas e aí, me conta, o quê que cê anda fazendo? Tá casado, tem filho?...
- Nada. Ainda no time dos solteilos na pelada de segunda à noite.
- Tá trabalhando onde?
- Alumo uns bicos aí, de vez em quando. Mas tô com um plano de montar um negócio com um amigo meu, em bleve...
- Sei. Você e seus planos...
- Não, mas esse é infalível!...
Ela acha graça, e vem-lhe a certeza: certas pessoas não mudam.
- Bons tempos, os nossos, né? Vocês me torravam a paciência, mas era divertido. Tem visto alguém da turma?
- O Cascão ainda jogava bola comigo, mas agola tá tão ocupado, dando palestla pelo país afola...
- Virou médico, né?
- Quem dilia. Outla que eu vi, mas já tem algum tempo, foi a Magali. Tava meio tliste, tinha sepalado do malido...
- Magali... nossa, eu me arrependo tanto da gente não ter ajudado ela, depois que ela descobriu que tinha era bulimia...
- Pior foi o Flanjinha.
- O que ele fez?
- Não lembla? Com doze anos começou a usar o labolatólio dele pla fazer loló. Chegou a intoxicar o cacholo dele fazendo testes, quase matou o coitado.
- Quê isso... e cê tem notícia dele agora?
- Depois que saiu do bailo, nunca mais vi. Um monte de gente, aliás. Mas e você? Encontla com alguém das antigas?
- Hmm, todo dia.
- Todo dia?
- Todo dia – ela sorri de novo, com seus dentes perfeitos.
Ele capta.
- Ah, não, Mônica. Não vai dizer que você casou com alguém da tulma.
- Pois é... – ela faz questão de ser misteriosa.
- Quem é?
- Ah...
- Anda, Mônica.
- Ah, chuta, vai.
- Titi?
- Não...
- Xaveco?
- Não, não...
- O Chico Bento. Não é possível. Você casou com o Chico Bento.
- Ele nem era da turma, Cebolinha.
- Ah, então sei lá, o Do Contla?
Pausa. Ele fica chocado, e é ela quem tem que falar:
- Também, ele era o único da turma que não me atazanava, né... hehe...
- Puta melda, Mônica. Com tanta gente no mundo, você foi casar logo com o Do Contla?
- Hmm, bobo. Pois fique sabendo que ele é um ótimo marido. E um ótimo pai, também.
- Imagino. Deve bater nas clianças no anivelsálio delas e te dar estlume no dia dos namolados.
- Vai me provocando, vai. Você lembra o que aconteceu da última vez.
- Ô se lemblo. Essa ciclatiz no queixo aqui, cê acha que é de quê?
- A culpa não é minha se você se desequilibra tão facilmente com uma coelhadinha de nada – ela diz, dando risada. Então aponta e fala – Olha só.
Ele olha dentro do carrinho dela. Se espanta quando vê as duas orelhinhas azuis.
- Puta que paliu. É ele??
Ela tira do carrinho e desdobra o pano: apenas uma toalha azul.
- Vou mandar bordar o nome da minha filha aqui. Dalila. Foi a minha homenagem pra ele, de certa forma...
- E ela tá com quantos anos?
- Vai fazer onze semana que vem. A outra já tem quinze, quase. Tá complicado, as duas naquela fase de querer sair, de arrumar namoradinho... Mas olha, como vale a pena. Cê não tem vontade de ter filho mesmo?
- Vontade tenho, né...
- Então! Toma jeito na vida, pô.
Ela diz isso rindo, mas percebe uma pontada de tristeza na súbita quietude dele.
- Eh... eu vou indo, tá? Tenho que acabar essas compras aqui...
- Vai lá. Qualquer dia a gente combina alguma coisa, alguma leunião da tulma...
- É, podia mesmo. Vou ver quem eu ainda tenho como achar, fazer umas ligações aí...
- Tá malcado então, hein.
Ele não quer se despedir, quer conversar mais. Quer que ela volte no assunto da paternidade, insista em perguntar sobre os filhos que ele não teve, ou o emprego fixo que ele não tem, para que possa, enfim, desabafar:
- Ah, Mônica, o que você espela que eu fale? Que todas as minhas namoladas me lalgalam antes de me aplesentalem plas famílias delas, com velgonha dessa melda de língua plesa? Que nenhuma emplesa quer contlatar um cala que fala desse jeito, pla não queimar o filme com os clientes? Que--
- Até mais, então.
Ela vira o corredor dos enlatados e desaparece com suas compras, alheia às lamúrias silenciosas do antigo amigo. “Até mais”, ele repete, mas ela já não está mais ali. Ele olha pro macarrão, olha pro ravióli, acaba pegando um pacote de miojo. Coloca entre as duas garrafas de vodca e segue com o carrinho, enquanto tenta criar coragem pra enfrentar a fila do caixa.
Mas então... loló?? O Maurício viu isso? hehee. Perfeito, adorei, agora que eu quero ver mesmo o curta...
ResponderExcluirAdorei o texto. Para alguem como eu que assinava as revistinhas da "turma" ler isto, depois de tantos anos, eh como se a ficcao tornasse realidade. Adorei mesmo!
ResponderExcluirlucas...eu ia vim aqui´só pra desejar feliz natal e ano novo...não sei quando eu volto nesse blog ne cara...então...Feliz Natal e Um ótimo ano novo cara!
ResponderExcluiro novo site do The Shades tá online...abração cara!!!
Paz,abraços e saudações orientais!
ass:Otto
Do Calalho !!!
ResponderExcluirTo chorando aki...
ResponderExcluirNao tive tempo de ler o texto todo, mas le-lo-ei. Um abraco.
ResponderExcluirAh, fotolog atualizado.
Aiaiaiai..
ResponderExcluire o pior que eu vejo isso acontecendo todos os dias..
vc num encontra um povo que estudou com vc na quinta série, na fila do cinema do shopping, e aí começa o bombardeio:
- lembra do Joao? foi pros EUA e nunca mais voltou.
- a Dani ficou grávida e casou.
- acredita que a Joana num passou até hj no vestibular de medicina, e continua com akele mesmo namorado?
é.. isso mostra que o tempo passa, tudo passa, a gente muda, mas agumas pessoas, sempre permanecerao!
Beijus!
Ps: eu ADOREI o texto!
nooooooooooossa!
ResponderExcluiraaaaaaaammmmmmmmmeeeeeeeei!
realmente ...
sou sua fã!
E ai? Vai atualizar isto nao?
ResponderExcluirPor isso é que minha promessa de ano-novo é: não prometer mais nada.
ResponderExcluirhehehe já faz tempo que num vejo nada novo aki viu...
ResponderExcluiré cara..dessa vez se foi a promessa de atualizar todos os dias
ResponderExcluirPuxa vida! Logo o Do Contra!
ResponderExcluirQue tristeza, tem coisas que a gente não precisa saber...
muuuuito bom :)
ResponderExcluirtá de palabéns!