04/09/2022

A inesperada explicação para o Garoto Manteiga


Nos tempos áureos da MTV Brasil, quando só saía um Acústico por ano e o VMB era o evento mais comentado do ano no recreio do colégio, eles exibiam uma vinheta animada durante a programação que estrelava um certo Garoto Enxaqueca. Era um menino estressado e mal-humorado, que se irritava com tudo e todos e cujos episódios – em preto-e-branco e traços simples – não duravam mais do que poucos segundos.

A esquete mais memorável do Garoto Enxaqueca, no entanto, não trazia o personagem-título. Uma outra criança aparecia em cena, gritando pelo amiguinho:

– Garoto Enxaqueca! U-uuuu! Garoto Enxaqueca!

Mas quem entrava em cena não era o Garoto Enxaqueca, com seu semblante impaciente e monocelha zangada, mas um personagem diferente, com cara de homem velho, lambendo com uma língua asquerosamente enorme o que parecia ser não um picolé, mas um alimento em forma de paralelepípedo.

O garotinho, claramente confuso, dizia:

– Quem é você? Eu tava chamando o Garoto Enxaqueca!

E, entre uma lambidela e outra, o sujeito respondia:

– Desculpe. Eu pensei ter ouvido “Garoto Manteiga”. 

Fim.


Era uma vinheta memorável não só porque a reprisavam à exaustão a cada intervalo de Teleguiado, Top 20 Brasil e Barraco MTV, mas pelo humor completamente nonsense. O Garoto Manteiga não era sequer um garoto, mas um marmanjo com cara de cinquentão e calvície proeminente. E a palavra “enxaqueca” não rimava e tampouco soava como “manteiga”, nem com a mais generosa boa vontade.

Uma explicação, quem sabe, fosse que sua idade avantajada trouxesse um problema de surdez que o fizesse confundir duas palavras tão díspares. Embora, do alto dos nossos doze anos, acho que a gente ria mesmo simplesmente porque era um troço avulso. Nem passava pelas nossas cabeças ginasiais que talvez o Garoto Enxaqueca não fosse criação brasileira, e que algo tivesse se perdido na tradução.

Na minha memória afetiva, 1997 foi o auge da MTV brazuca. Numa era pré-internet (e, mais importante, pré-Napster), o canal 29 era a principal fonte de descobertas musicais para quem queria ir além do que passava no Domingão do Faustão. Eu acompanhava o Disk MTV todo fim de tarde e gostava de quase tudo que tocavam por ali, desde os clipes mais recentes das minhas bandas favoritas de então – Raimundos, Green Day, Skank, Planet Hemp – até one-hit wonders esquecidos tipo Maria do Relento ("Conhece o Mário?"), Lagoa ("Revista de Mulher Pelada") e os então onipresentes Virgulóides. Cheguei a fazer até uma versão caseira do VMB durante um aniversário de família, pedindo que os convidados votassem em suas bandas favoritas, apresentando os vencedores no final da festa e registrando tudo em VHS.

Dia desses, eu estava com uma ligeira dor de cabeça e me peguei pensando na sonora palavra “enxaqueca”. Imediatamente me lembrei do bom e velho Garoto Enxaqueca e bateu a curiosidade de jogar seu nome no Google. E aí descobri que ele não era criação da MTV Brasil coisa nenhuma, mas obra de um cartunista norte-americano, Greg Fiering, e que seu nome original era Migraine Boy. “Migraine”, no caso, é a palavra inglesa para “enxaqueca”, portanto era uma tradução ao pé da letra.


Mas peraí, disse meu cérebro. Se a versão original era em inglês, e aquela piada do Garoto Manteiga? Em português, a conexão entre “enxaqueca” com “manteiga” já era extremamente forçada e só funcionava se o foco fosse no “ê” como núcleo da sílaba tônica. Entre “Migraine Boy” e “Butter Boy”, a semelhança era nula. Talvez a piada fosse ainda mais avulsa do que pensávamos?

Uma busca rápida no YouTube me revelou uma compilação de esquetes do Garoto Enxaqueca. E lá estava, aos 5 minutos e 3 segundos, a vinheta clássica da minha pré-adolescência. 

Migraine Boy! Yoo-hooo! Migraine Boy”, dizia o garotinho. (A pronúncia de migraine, a propósito, é “mái-grêin”.)

Yes?”, dizia o semi-calvo lambedor de manteiga. 

Who are you? I was yelling for Migraine Boy”, explicava o guri.

I’m sorry”, respondia o marmanjo. “I thought you were yelling ‘Margarine Boy’”.

Então era isso. Vinte e cinco anos depois, finalmente descobri que o Garoto Manteiga era, na verdade, o Garoto Margarina. “Margarine”, claro, guarda uma similaridade sonora muito maior com migraine do que seus correspondentes no idioma de Sabrina Parlatore. Quem diria: a piada tinha sentido. Me senti como quando me explicaram que o codinome do pastor alemão do filme K-9 - Um Policial Bom Pra Cachorro não se pronunciava "ká-nove", e sim "kay-nine" (um trocadilho com "canine"). Envelhecendo e aprendendo.

Hoje em dia, não sei nem que fim levou a MTV Brasil. Disseram que tinha acabado, depois voltado, mas não ouço ninguém mencioná-la há pelo menos uns dez anos. Toda a influência cultural que o canal tinha, botando bordões de Hermes & Renato na boca do povo e gravações de Acústicos nas paradas de sucessos, ficou lá atrás, na década retrasada.

A última vez que ouvi falar do meu antigo canal favorito foi em 2011, quando encontrei Cazé Peçanha vestido de saci-pererê no metrô de Beijing (tenho ibagens e um relato completo). Inclusive, Cazé me entrevistou rapidamente na ocasião – uma festa a fantasia improvisada no metrô pequinês –, e depois várias pessoas vieram me dizer que me viram nas chamadas do programa que mostravam o VJ explorando a China. 

Eu mesmo nunca cheguei a ver, porque, afinal, estava morando na China. Mas até hoje me bate uma saudade de ligar a TV no 29 pra assistir ao Rock & Gol, ver o João Gordo esculhambar alguém ou conferir se o clipe novo do Offspring venceu o Top 20 deste sábado.

Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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