Aotearoa
A idéia era ter escrito e publicado este texto coisa de um ano atrás, mas minha veia de procrastinador ordenou que eu fosse adiando, adiando, aí já viu, não pude desobedecer. Apesar disso, aos pouquíssimos o texto foi tomando forma, com base em anotações providencialmente registradas em tempos de outrora. Em resumo: mais ou menos como quem vai pra Sabará, em 2006 estive na Nova Zelândia por um dia. E com um ano de atraso, deixo aqui o relato da viagem.
O matadouro
Com a papelada na mão, a gorda do guichê olhou pra gente e perguntou mais uma vez:
- Não entendi direito. Vocês tão entrando na Nova Zelândia hoje... pra ir embora amanhã?
Ê lelê. Sim, immigration girl. Estamos aqui de passagem, vindos da Austrália, o próximo vôo só sai amanhã à noite, daqui a quase vinte e quatro horas, e por isso pretendíamos passar o dia conhecendo Auckland antes de zarpar pra Buenos Aires... Pode olhar, tá aqui nossa passagem de volta, a reserva do hotel... ou quer que desenhe?
- Hm. Tá. Ahan.
Ela olha pra gente, olha o bilhete, checa os passaportes, conversa com os colegas, folheia a papelada mais uma vez e então sentencia:
- Ok, tenham uma boa estadia.
Em todos os aeroportos por onde tínhamos passado na Austrália, todos mesmo, Bruno e eu fomos abordados por funcionários que chegavam sempre com a mesma conversa:
- Oi, tudo bem? Você foi selecionado aleatoriamente para um rápido teste anti-bombas. Alguma objeção quanto a isso?
O que ele esperava que falássemos? “Pô, e se você me tirar as cinco garrafinhas de coquetel molotov que eu tô guardando pra hora da decolagem?” Não demonstrávamos objeção, ele passava uns detectores pelas nossas roupas e tava tudo bem.
O mais engraçado era a expressão “você foi selecionado aleatoriamente”. Aleatoriamente eu, com essa minha cara de árabe? Curioso foi que, das primeiras vezes, só eu era “aleatoriamente selecionado”. Depois passaram a escolher o Bruno, talvez com o raciocínio de que o árabe poderia entregar a bomba pro amigo esconder, pra disfarçar.
Então estávamos lá, aliviados por termos entrado na Nova Zelândia e sem teste anti-bombas, quando cruzamos com uma simpática velhinha, também funcionária. Explicamos tudo de novo, é um dia só, conexão só amanhã, ela viu a papelada rapidamente e disse:
- Ah, tudo bem. É só seguirem essa linha azul do chão aqui e virarem à direita, por favor.
Fizemos o que ela pediu, obedientes. E achando estranho que ninguém fazia o mesmo: a maioria de nossos colegas de fila, ao invés de seguir o traçado indicado pra gente, já tinha tomado a esquerda e se via em liberdade, fora das enclausurantes portas de vidro da alfândega. Tudo bem, somos estrangeiros e precisamos olhar mais uma burocraciazinha qualquer.
Só que a burocracia não era nada zinha. A velhinha, tão simpática, tinha era nos mandado direto pro matadouro. Uma sala ampla com algumas mesas e funcionários nada simpáticos abrindo e fuçando sem dó as mochilas de duas jovens loiras que deviam ser norueguesas. Ao dar de cara com a cena, um outro cara à nossa frente, talvez americano, soltou uma risada típica que quer dizer, em qualquer idioma, “agora é que fudeu de vez”.
Amaldiçoamos a alfândega, a velhinha simpática e esperamos. Dava pena das duas loiras: deviam ter levado tanto tempo pra arrumar a mochila, colocando as roupas de um jeito que coubesse tudo, dobrando roupas e embrulhando objetos quebrantes, e o alfandegueiro espalhava tudo pela mesa sem cerimônia, ao mesmo tempo em que fazia mil perguntas. E elas levando bronca.
Depois do americano, Bruno e eu fomos chamados. Cada um pra uma mesa diferente, de um jeito que um nem via o outro direito durante o interrogatório. Pus a mala sobre a mesa e já ia começar a abrir quando o sujeito me impediu com um gesto de mão.
- Senta aí, deixa que eu mexo.
E foi tirando camisas, calças, papéis, mapas, folhetos, DVDs, bumerangues. Depois começou a perguntação: “você tá trazendo algum tipo de droga na mala? você usa drogas? conhece alguém que usa? não é possível, você é estudante, com certeza conhece!” As perguntas são tão engraçadas quanto aquela do teste anti-bombas. Sabendo que qualquer “yes” vai ferrar sua vida, até um Zé Pequeno negaria tudo.
Do outro lado da sala, o Bruno passava por maus bocados. Tinham feito um teste antidrogas na mochila dele e detectado vestígios de heroína. Fala sério: heroína? Não sei como são feitos esses testes, mas devem procurar por substâncias que normalmente são encontradas nas drogas mais famosas. Será que pêlo de canguru tem elementos em comum com heroína?
Aí é assim: eles ficam lá, jogando verde, talvez na esperança de encontrar uma quadrilha muito pirada querendo aprontar altas contravenções. E você vai negando, vai negando, até que o cara cansa de perguntar e fala: beleza, pode guardar suas coisas.
Claro, eles tiveram tanto trabalho pra tirar tudo dali de dentro, quê que custa você perder um tempinho tentando encaixar esse casaco que agora não quer entrar nem com reza?
- Welcome to New Zealand! – eles dizem, sorrindo, antes de partirem para a próxima inquisição.
Uga uga
Uma coisa que chama atenção quando a gente chega na Nova Zelândia, em comparação com a terra dos ornitorrincos, é que a maioria dos letreiros no aeroporto traz a frase em inglês e seu correspondente em maori, a língua dos habitantes nativos de lá. Nova Zelândia em maori, por exemplo, é “Aotearoa”. Tudo bem, os aborígenes não eram uma tribo única, mas uns 300 grupos diferentes vivendo num país imenso e com idiomas sem nenhuma relação entre si, e encaixar trezentas frases por letreiro daria um trabalhão do cão pro estagiário que fosse layoutar o troço.
De qualquer forma, os maoris me pareceram bem mais integrados à Nova Zelândia do que os aborígenes à Austrália. Enquanto em Sydney o máximo que se via era um ou outro tentando descolar um trocado tocando didjeridoo perto dos pontos turísticos, em Auckland tinha maoris trabalhando em lojas, aeroportos, shoppings, McDonald’s. Quem quiser pode até fazer uso de um glossário básico maori:
Kia Ora – Oi!
Kei te pehea koe – Coméquitá?
Ka kite ano – Tchau, hein?
Tena koe – Valeu aí, fi!
Auckland
O despertador tocou às 7 em ponto na manhã de 10 de fevereiro. O que já seria um sacrifício em horário normal era ainda pior pro nosso organismo, acostumado ao horário australiano de 3 horas a menos. Sete da manhã na Nova Zelândia equivaliam às quatro da matina pra gente. Mas se madrugar era o único jeito de aproveitar as escassas horas que tínhamos na terra dos kiwis, vambora! Tomamos um café que não ficou na memória, atravessamos a rua do hotel e pegamos o primeiro ônibus que ia pro centro, passando por bairros que lembravam os cenários do grande clássico neozelandês Fome Animal.
Auckland nos pareceu um lugar bem agradável de se viver. Cidade grande sem aquele jeitão cosmopolita e opressor das metrópoles, sabe cumé? Claro que, na condição de maior cidade da Nova Zelândia, ela não é a melhor tradução do país em geral. Os esportes radicais, as paisagens estonteantes, a própria cultura maori, se fazem bem mais presentes nas cidades menores. Embora em Auckland não seja difícil dar de cara com um punhado de vulcões ali ou um bungee-jump no meio da rua acolá.
Também não é difícil, especialmente pra quem vem da Austrália, notar alguns paralelos entre Auckland e Sydney. As duas são as principais cidades de seus respectivos países mas não são as capitais; por causa da colonização britânica e a babação de ovo em cima da rainha, compartilham muitos nomes de ruas (Queen Street, Victoria Street, Albert Street); ambas são litorâneas e por isso nota-se nelas uma forte cultura marítima, com ferry boats usados como transporte público, museus marítimos e a ponte que se chama Harbour Bridge. As duas cidades também têm suas torres enormes que aparecem de penetra em todos os cartões postais panorâmicos, mas nesse quesito Auckland leva vantagem: sua Sky Tower é o maior edifício do hemisfério sul. Pô, e eu achava que era a torre de Nova Lima...
Kiwi pra todo lado
Assim como na Austrália as lojas de souvenir exploram exaustivamente as espécies endêmicas do país, dos cangurus e koalas aos ornitorrincos e águas-vivas ultra venenosas que matam em trinta segundos, nas lojinhas da Nova Zelândia só se vê ovelhas e kiwis.
As ovelhas estão presentes por uma simples questão de estatística: tem ovelha pra caramba no país. Os dados que eu ouvi falavam de 44 milhões de ovelhas, contra 4 milhões de habitantes, garantindo horas de diversão para os insones que contam carneirinhos.
Já os kiwis são pequenos pássaros que não voam e que só existem na Nova Zelândia. De tão estranho, acabou virando símbolo. E sinônimo pra tudo: gente, fruta, dinheiro. A fruta é conhecida por lá como kiwifruit. O dinheiro é chamado de “dólar kiwi”. O banco tem o nome de Kiwibank. E os próprios neozelandeses usam kiwi como apelidos para eles mesmos, não se importando com os que propagam por aí a história de que tem pêlo mas é fruta.
No aeroporto, quase na hora de ir embora, fui na kiwionda e comprei um chocolate sabor kiwi. Pura enganação: mal se sentia o gosto de outra coisa que não o próprio chocolate, e me parece distante o grau de parentesco entre o kiwi e o cacau. Ou o recheio era de kiwi-pássaro e eu não tava sabendo?
Para os admiradores da inusitada ave, vale assistir a esta animação bacana, em cartaz no YouTube.
Quanto a mim, volto logo após o carnaval, com um estoque renovado de relatos de viagens. Inté!
Auckland , fotos , Nova Zelândia , Oceania , viagens
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