E continua o indefectível concurso a vinte mãos da piauí. Minha versão do capítulo II de
A Velha Debaixo da Cama não foi escolhida como a oficial, mas como de costume publico neste blog.
Recapitulando:
O Capítulo I, do cearense Ciço Léo, encontra-se
aqui.
O Capítulo II vencedor, do paulista Rodolfo Viana, pode ser lido
aqui.
O meu Capítulo II, que permanecerá eternamente inacabado, está
aqui ou logo abaixo:
A Velha Debaixo da Cama
Capítulo II - O mato
Ao longo das noites em claro que passava com a velha debaixo da cama, Antonio já havia arquitetado e abortado vários planos como aquele. O mais simples demandava apenas roupa do corpo e disposição para correr. O mais ambicioso envolvia um suicídio forjado e um subseqüente monumento em sua homenagem plantado ao lado do altar erguido para o Coronel Mergulhão.
A fuga que Antonio pretendia levar a cabo naquela manhã ficava no meio termo. Tinha deixado de lado a trabalhosa simulação da própria morte, mas também não queria encarar sem nada nas mãos os dois dias de caminhada ao vilarejo mais próximo. Apressado, vasculhou no sótão os apetrechos que julgava imprescindíveis: canivete, guarda-chuva, um cantil com água e outro com conhaque, a bússola defeituosa que apontava o noroeste, tesourinha de unha. Embrulhou o kit-fuga junto com uma muda de roupas e se mandou pela janela do sótão antes que Maria de Maria, que ainda o aguardava pacientemente para a famigerada caminhada matinal, aparecesse pra saber do amante.
Antonio equilibrou-se sobre o parapeito, desceu rezando pela calha podre e aterrissou no jardim dos fundos. Espiou o bangalô por uma última vez e começou a escapada sem remorso, esgueirando-se pelas vistosas pitangueiras que cercavam o casarão.
Nas primeiras horas caminhou depressa. Maria de Maria criava perdigueiros e era bem capaz de esfregar em seus focinhos uma das cuecas que ele deixara para trás. Depois que a mata estava densa o bastante, parou um pouco para respirar e finalmente festejou a liberdade. Fartou-se com jaboticabas, empanturrou-se de caquis, deleitou-se com as goiabas e amargou feliz a dor de barriga resultante, pois estava livre e aquilo não tinha preço.
Dormir no meio do mato, no entanto, não foi assim tão diferente das noites anteriores. O cimento gelado e as lamúrias da velha foram trocados pela grama que pinicava as costas e os intimidantes sons da natureza. Antes de cair no sono, Antonio se pegou lembrando a noite em que conheceu a viúva. Sentado ao piano, dedicara a ela um tango arcaico e, enquanto ela pensava “que gracinha”, ele refletia: essa velha deve ter dinheiro.
O dia amanheceu irônico – Antonio abandonara Maria, mas não se safara de uma andança matutina. Retomou a viagem com alguma culpa. Não precisava ter fugido assim, sem um tchau de gratidão à mulher que lhe dera teto para morar e chão para dormir. Velhas são velhas por definição, em poucos anos a viúva partiria para o encontro derradeiro com o saudoso Mergulhão e, afinal de contas, Antonio teria uma polpuda herança pela frente.
Quando retornou ao sítio, livre do peso na consciência e devidamente munido de um arsenal de explicações, notou um rebuliço: vizinhos, empregados e homens de terno aos cochichos ocupavam a porta do casarão. Aproximou-se apreensivo e quis saber o que era aquilo.
- O que aconteceu? Cadê Maria de Maria? – perguntou ao primeiro que encontrou. A resposta veio sem rodeios:
- Morreu, bicho besta, morreu!