23/11/2015

Memórias de um rebelde do Distrito 8


Pisei em casa às cinco e meia da manhã, exausto após virar a noite trabalhando e pegar três metrôs para voltar. O ombro ainda doía de apoiar espingarda, cantil e sacola por três dias seguidos. Havia sujeira até debaixo das minhas unhas, e o cabelo, particularmente, estava uma inhaca: precisei de duas mãos de xampu para deitar a cabeça sem manchar o travesseiro. E dali a algumas horas começaria tudo de novo: botar roupa de rebelde, interceptar trem em movimento, contracenar com a Jennifer Lawrence. Ninguém disse que trabalhar numa produção de Hollywood seria moleza.

Minha breve carreira de figurante começou em abril de 2014, quando topei com um anúncio no Facebook: “Procuram-se 1000 figurantes asiáticos, africanos, latino-americanos, árabes, turcos”. Embora não mencionassem o nome do projeto, não era difícil juntar as peças: a agência de figuração trabalha para os Estúdios Babelsberg, que estão por trás de praticamente toda grande produção internacional filmada na Alemanha; a última parte da franquia Jogos Vorazes estava com filmagens marcadas em Berlim; na trama, os diversos distritos apresentam uma grande diversidade étnica; e não se contrata mil pessoas pra fazer um filme B de fundo de quintal. Como um latino-americano com cara de árabe e morando em Berlim, pensei: “Por que não?”, e lá fui eu na agência preencher formulário, tirar foto e aguardar um possível convite.


O e-mail veio semanas depois, me convocando para uma prova de figurino em Potsdam, cidade vizinha de Berlim. Lá, descobri que haviam me escalado para o papel de rebelde do Distrito 8 (ou “combatente pela liberdade”) – nenhuma surpresa, já que com barba malfeita e cabelo desgrenhado, dificilmente me colocariam do lado dos soldados. E os rebeldes, logo descobri, se vestem basicamente com pedaços de trapos velhos. Minha roupa consistia em:

- Uma blusa cinza de mangas compridas com uns furos para colocar o polegar, como se fosse uma luva improvisada;
- Calças compridas amarelas e largas;
- Sapato bege;
- Duas tiras de pano enroladas no tornozelo;
- Uma fita vermelha amarrada no braço esquerdo (aparentemente é o símbolo dos rebeldes);
- Um pesado poncho marrom por cima de tudo;
- Um cachecol no pescoço;
- E uma bandana na cabeça, jogando meu cabelo pra trás e me fazendo parecer uma beterraba.

(Essa visão ímpar teria certamente virado meu perfil do Facebook caso selfies e fotografias em geral não fossem rigorosamente proibidas no estúdio ou no set, sob pena de ir no ato para o olho da rua.)


Marcaram o primeiro dia de filmagens para uma segunda-feira, 26 de maio de 2014. Ponto de encontro: o antigo aeroporto de Tempelhof, desativado em 2008. O horário camarada: cinco da manhã.

A produção aproveitou o terminal abandonado do Tempelhof – que, ao contrário da parte externa transformada em parque, não é aberto ao público – para montar o seu quartel-general: em meio aos balcões de check-in, placas de companhias aéreas e esteiras de bagagem, que continuam intocados após esses anos todos, puseram enormes tendas brancas para cada departamento: figurino, cabelo, maquiagem, equipamentos, armas. A via-crúcis que percorríamos ao chegar se repetiria por todos os dias seguintes: preencher formulário manualmente com todos os dados pessoais (por que diabos não deixavam esse negócio num computador?). Vestir os trapos na tenda de figurino. Pegar os props (objetos usados em cena): espingarda, cantil e uma sacola de pano com enchimento falso. Passar pelas mãos impiedosas do setor de maquiagem, o que incluía encardir rosto, pescoço e dedos com uma tinta fedorenta. Cada departamento tinha uma fila imensa de figurantes esperando a vez e o processo todo levava umas duas horas.

Aí, finalmente, já imundo e carregando tralhas, pude encher o pandu com um sanduíche de salame e queijo e um suco de laranja. Mas quando ainda bebia meu café – ainda mais imprescindível quando se acorda às 3h30 da manhã –, chamaram a gente de novo para que os chefes do setor de figurino pudessem dar o seu aval, e levaram o café embora. Pior foi a queniana do meu lado, que estava em sua primeira mordida no pão com queijo: arrancaram o pão da mão dela, não devolveram mais e ela só pôde comer alguma coisa no almoço. Pelo visto eles levam essa coisa de “Hunger Games” a sério.


Fazendo História

Já eram quase 9h da manhã quando entramos no set – um lugar aberto no subsolo do aeroporto, todo cinzento e cercado de prédios, onde colocaram caminhões e contâiners e montaram um palanque para a cena que iríamos filmar. Éramos uns trezentos figurantes – mas, como logo descobriríamos, valíamos por uns dez mil.

A cena era um discurso. A atriz Patina Miller, lá de cima do palanque, dirigia-se aos rebeldes:

– “Eu sou a Comandante Paylor do Distrito 8. Uma soldada, assim como vocês. E não sou muito boa com discursos. Mas de uma coisa eu sei: olhe para a esquerda; olhe para a direita. Pela primeira vez em muito tempo, todos os 13 distritos estão unidos. Da forma como eu vejo, nós já fizemos História!” (Nessa hora, seguindo as instruções da produção, gritávamos cheios de entusiasmo.)

Ela continuava: “Blablabla o Presidente Snow é um filho da puta, blablabla vamos atacar o Capitol, blablabla o bicho vai pegar em Panem!” (vivas), “vamos fazer História!” (mais vivas; gostávamos mesmo de fazer História) e “nosso futuro começa amanhã, quando marcharemos em direção ao Capitol!” (muitos vivas)

O Tempelhof durante as filmagens...


…e o resultado final:

E assim foi o dia inteiro. A mesma cena, o mesmo discurso, os mesmos vivas, take após take. Primeiro nos posicionaram em um quadradão em frente ao palco; depois no quadradão do lado esquerdo; depois um quadradão pra trás; depois outro pra direita; depois lá pra cima, em frente à grade; lá embaixo de novo; e por aí vai. A ideia, como já deu pra ver nas fotos acima, era copiar e colar figurantes pra todo canto, fazendo trezentos virarem trocentos. O calor e o peso dos props (principalmente a espingarda, que era de verdade e não de plástico como a dos engomadinhos do Distrito 13) começaram a incomodar: sentávamos e tentávamos descansar entre os takes, ganhávamos água de vez em quando, mas intervalo e almoço que era bom, só às 14h (no menu: macarrão insosso com molho de tomate e legumes). E depois, mais discurso, mais vivas, mais repetição: a cena só terminou lá pelas 17h, e ainda precisamos enfrentar mais umas cinco filas para devolver espingarda, devolver cantil, devolver o figurino. A Comandante Paylor, “guerreira como a gente”, não foi avistada em nenhuma das filas.


Rebelde sem pausa

Dois dias depois, quarta-feira, cheguei no Tempelhof às 17h para uma noite que prometia ação: tivemos que assinar um papel avisando dos riscos das próximas cenas, que envolveriam um trem em movimento, gruas enormes e barulhos de tiro (ganhamos até massinha pra enfiar no ouvido). A previsão do tempo era chuva na certa, e eu estava mesmo achando estranho planejarem cena externa debaixo de toró, mas não: preferiram pagar trezentos figurantes e rezar para São Pedro do que mudar o cronograma logo de cara. E lá ficamos, prontos pra guerra, esperando horas a fio no terminal abandonado. No fim das contas, São Pedro não atendeu às preces em alemão e a produção nos liberou do set pouco após a meia-noite – o que, contando as filas para devolver os apetrechos todos e os horários parcos do metrô de madrugada, me fez chegar em casa às 2h30.

A quinta-feira, em compensação, foi assaz movimentada. Começou com um curso-relâmpago de como empunhar uma espingarda com propriedade. Abrimos um círculo enorme e um especialista veio instruindo cada um: “Coloca a arma assim no ombro”, “Segura dessa forma aqui”, “Empurra o ombro mais pra frente, pois num cenário real você cairia no chão quando desse o primeiro tiro”. Além disso, embora as armas estivessem obviamente descarregadas, havia várias regras de segurança reiteradas a todo momento: não deixar a espingarda no chão, descansar a arma apoiando-a no seu próprio pé, não trocar a sua arma com a de ninguém, não apontar a arma para ninguém.

A produção começou a chamar a rebeldaiada, cada assistente responsável por um grupo de dezenas de figurantes: “Quem é do grupo Fulano vem comigo!”, “Quem é do grupo Sicrano vem comigo!”. “E quem não sabe de que grupo é?”, perguntei. “Fica lá atrás esperando e vem com o último grupo”, me respondeu o cara. Vi a galera indo com os grupos Fulano, Sicrano e resolvi segui-los assim mesmo, me infiltrando no meio de outros esfarrapados com cara de Distrito 8; dois amigos do primeiro dia de filmagem fizeram o mesmo, e assim, como quem não quer nada, conseguimos chegar ao set. E ainda bem que fizemos isso, porque o pessoal que ficou lá atrás passou a noite inteira da mesma forma que na noite anterior, esperando horas no frio sem filmar um take sequer. Não dá pra ser rebelde sem fazer uma rebeldia.


O set, também aberto, começava com um túnel à esquerda, de onde saía uma pequena ferrovia. Fiquei posicionado ali perto junto com um punhado de colegas, mas havia rebeldes pra tudo quanto é lado: à direita, em cima de vários caminhões; em frente, do outro lado da ferrovia; nos parapeitos lá em cima; todos apontando suas espingardas para a saída do túnel.

Action!” Devíamos estar a uns 100 metros de distância, mas dava pra ver a Jennifer Lawrence surgindo da outra ponta e parando pra trocar uma ideia com um sujeito loiro de cabelo comprido (só fui perceber depois de uns dez takes, quando alguém me apontou, que aquele era o Woody Harrelson). No momento em que ela se dirigia à multidão de rebeldes (“Eu sou Katniss Everdeen e esta noite vamos arrebentar a boca do balão”, ou algo assim – estou citando de cabeça), era interrompida pelo barulho de um trem saindo do túnel.

Nossa tarefa, enquanto rebeldes, era interceptar o trem e render quem vinha dentro: um pessoal de roupas brancas, sujos de poeira e conhecidos coletivamente como “Nuts”. Mandávamos todo mundo se deitar no chão, chutávamos longe os revólveres e espingardas que eles tinham nas mãos e ficávamos lá vigiando, enquanto Jennifer e companhia prosseguiam com os diálogos. De vez em quando pipocavam uns sons de tiros — usamos protetores auriculares (vulgo massinha gosmenta) o tempo todo, mas de onde estávamos, nem precisava. Katniss fazia seu discurso, mas ninguém vibrava: “Essas pessoas não são seus inimigos! O verdadeiro inimigo é Snow! Voltem suas armas para o Capitol!”. Se ela tivesse dito que faríamos História, talvez a recebêssemos com mais empolgação.

As gravações continuaram até as 3h45 da manhã. Contei pelo menos 16 takes completos, cada um durando uns cinco minutos, sem falar nos que foram interrompidos ou naqueles que começaram já no meio na cena. Entre os takes o pessoal da produção trazia cobertores, água, chá, biscoitos e outros agrados, e depois de um tempo comecei a aproveitar esses intervalos para zanzar pelo set e espiar a Jennifer Lawrence de perto. Inclusive, ela mandou um beijo para os leitores do Biselho.


A noite de sexta-feira foi, pra variar, longa e cansativa. Na maquiagem, tiveram um cuidado especial em me deixar mais encardido do que nunca, passando aquele chorume por entre os dedos e até nos olhos (tive que pedir pra tirar o excesso para conseguir enxergar). Acho curiosa essa atenção com os mínimos detalhes – os caras da inspeção de figurino e maquiagem eram meticulosos, “Borrifa um pouco mais de tinta no calcanhar daquela bota ali” – para centenas de pessoas que, quando muito, virarão um borrão desfocado no fundo da cena. Deve ter sido bem mais fácil fazer figuração nos filmes do Ed Wood, que não estava nem aí pra essas coisas.

A cena da vez? A mesma da noite anterior, só que filmada de novos ângulos. Posicionaram-nos do outro lado do set, e logo ficou evidente que se a câmera filmasse um mínimo que fosse do nosso grupo, seria só por uma fração de segundo e no comecinho da cena. Mesmo assim, tínhamos que ficar com os braços levantados mirando a espingarda pelos cinco minutos que duravam a coisa toda, em takes que duraram, como de praxe, a madrugada inteira. Ouvimos falar que gravaríamos uma cena extra com a Jennifer Lawrence alimentando uvas aos rebeldes feridos, mas era só delírio da nossa imaginação.

Nos meses que se sucederam às filmagens no Tempelhof, recebi inúmeros convites da agência de figuração para papéis que iam de músico de rua espanhol e espectador das Olimpíadas de 1936 até refugiado, assaltante, presidiário e seguidor de uma seita indiana. Mas já com emprego fixo e sem disposição para voltar pra casa imundo às 6h da manhã e ir para o escritório às 9h, optei por pendurar os trapos e farrapos até segunda ordem.

E no último domingo, após um ano e meio de expectativa, pude finalmente conferir nos cinemas não só resultado de toda aquela trabalheira em maio de 2014, como a resposta para a pergunta que não queria calar: será que eu apareço em Jogos Vorazes: A Esperança — O Final?

Bem… Na cena do discurso, que levou um dia inteiro pra filmar, a multidão de rebeldes só dá as caras em uns dois planos rápidos (que já tinham aparecido nos trailers) — o restante são closes da Comandante Paylor e planos fechados da Jennifer Lawrence cercada por meia dúzia de figurantes, em takes filmados quando eu não estava. Nos planos abertos eu estou lá no meio da multidão, provavelmente em vários lugares ao mesmo tempo, fazendo História anonimamente. Já na cena do trem, que levou três madrugadas, meu grupo aparece por mais tempo no canto esquerdo da tela, rendendo a galera e mandando todo mundo pro chão, enquanto Jennifer tenta apaziguar as coisas no primeiro plano. Em certos momentos, nem estamos tão desfocados assim — mas serão necessários Blu-ray em alta definição, zoom na tela e olhos de lince para identificar este que vos fala.

E você que reclamava do Rodrigo Santoro no Lost.

Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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