22/10/2007

Mirela



A revista piauí tem um concurso literário que consiste numa frase avulsa, sem sentido, que deve ser encaixada num texto com pé, cabeça, tronco e membros. A frase deste mês era: "Os arpejos de mamãe me levaram ao suicídio". Eis o meu texto, que também está aqui:

Mirela

Seu azar foi nascer em família de instrumentistas. Não é que ela odiasse música. Gostava, assim como se gosta de algodão doce no parque, de vez em quando. Mas não tinha jeito nenhum pra tocar. O violão que exalava melodia nos dedos da irmã virava giz em quadro negro se ela punha a mão. A gaita que o pai tocava com classe fazia o cachorro avançar nas visitas quando ela bafejava nas palhetas. “Você não precisa tocar um instrumento só porque a gente toca”, diziam os parentes, sinceros. Mirela encarava como provocação e seguia surrando canções.

Um dia ela se encheu.

Declarou-se vencida e não tardou a tomar birra de qualquer um que tivesse a petulância de produzir som na sua frente. Mais ou menos como aquela tia encalhada que passa a ter raiva dos casais apaixonados. Foi morar sozinha numa casa silenciosa, com caixas de ovo nas paredes servindo de isolamento acústico, de modo que nem a cantoria matinal do amolador de facas a incomodava mais.

Nas festas de família, ainda sofria. Tinha que aturar os sobrinhos batucando Villa-Lobos nas louças do jantar, o tio arrotando o bolero de Ravel, o papagaio imitando o vozeirão do Sílvio Caldas. Às vezes ela explodia numa raiva seca sem fundamento, como no dia em que interrompeu o parabéns de seu próprio aniversário berrando impropérios para os convidados.

O tempo transformou a ojeriza em fobia e Mirela virou uma moça amarga, que desprezava serenatas de amor e punha cera no ouvido durante o Carnaval. Chegou à maturidade solteira, sozinha e, para seu desespero, com o dever moral de abrigar a mãe recém-enviuvada. Foi a sua ruína. Dona Lalá passava o dia dedilhando cravos, soprando fagotes, martelando xilofones, praticando acordes e glissandos. Se a filha resmungava, devolvia: “Me recuso a renunciar da arte por causa de uma cisma estúpida”.

Foi ouvindo a mãe tocar pela décima terceira vez uma mesma fuga de Paganini numa mesma terça-feira chuvosa que Mirela tomou a decisão. O bilhete de despedida foi rabiscado no canto de uma partitura: “Os arpejos de mamãe me levaram ao suicídio. Cheia de colcheias, ponho fim a essa existência diminuta”. Amarrou no ventilador de teto a corda do violoncelo de dona Lalá, laçou o pescoço e saltou do banquinho do piano. No instante seguinte ouviu a vibração primorosa que escapuliu da corda e para sua própria surpresa pensou, maravilhada: um mi bemol perfeito, e eu mesma produzi. Mas aí já nem adiantava.

   4 comentários :

Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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