A Velha Debaixo da Cama - Capítulo 1
A revista piauí inaugurou um novo concurso literário, uma história seriada cujos 10 capítulos serão escritos pelos vencedores do ano passado. O pontapé inicial era uma frase prosaica: "Antonio levantou-se, abriu a janela, e viu Maria lá embaixo, à espera". Fiz meu texto baseado num argumento de André Paio, meu pai, que viu na frase uma possibilidade de narrar a chegada de Augusto Paio, meu bisavô, ao Brasil. Não foi dessa vez, mas ainda tenho nove chances ao longo dos próximos meses. O texto vencedor está aqui. Já a minha versão, que ficará para sempre inacabada, vem a seguir:
Antonio e Maria - Capítulo 1
Antonio levantou-se, abriu a janela, e viu Maria lá embaixo, à espera. Engolindo a surpresa, gritou que subisse. Tirou do guarda-roupa uma cara bem lavada, pôs no bolso um punhado de desculpas e andou até a sala tentando incorporar um papel apropriado. Quando ela apareceu, carregando uma trouxa de panos, ele acabara de descartar o de amante ressentido e vestir-se de amigo com saudades.
- Maria, Maria! Faz o quê, uns oito meses?
- Doze meses, disgraziato. Precisamente doze meses.
- É que pra mim parece que foi ontem...
- Parece, né? E uma coisa dessas brota assim, do dia pra noite.
A coisa dessas não era um saco de roupas como ele supunha, mas um ser vivo de olhos grandes e tranqüilos, embrulhado em cobertores.
- Este é o Augusto. Não é a minha cara?
Não era. O nariz pomposo, a sobrancelha modesta e o queixo furado, quase dividido, não se repetiam na face dócil de Maria, embora estranhamente abundassem na de Antonio. Tinha três meses de vida e o encarava com uma naturalidade quase incômoda.
Em seguida, ela mostrou a carta.
- Pra mim?
- Pra mim. Do meu irmão. Chegou semana passada.
Antonio correu os olhos, ignorando os garranchos mais safados. Depois perguntou, preocupado, se ela estava mesmo disposta a abandonar uma vida serena pra tentar a sorte num continente incerto e hostil, à mercê das intempéries. Ela ouviu com pena o palavrório e disse apenas: estou indo embora na sexta.
- É um convite? – ele sorriu amarelo.
- É um comunicado. Só vim aqui pro Augusto ver você uma vez na vida.
Quatro dias depois, Antonio zarpava com ela e o menino num navio para a América, respirando pela última vez o ar do Vêneto e ouvindo o século dezenove agonizar. Tinha aparecido no porto de supetão, sugerindo que ela pegasse uma embarcação alternativa, mais vazia e mais barata. Precisou levá-la pelo braço até o comandante para que ouvisse que sim, este navio está indo pra América, não, você não terá que remar, até que ela cedeu e subiu com Augusto a escadinha do navio. Só não entendeu quando Antonio deixou no ar um boa-sorte-em-sua-nova-vida e fez que ia voltar.
- Como assim, você não vai?
- Não, não. Vou ficar. Minha vida é aqui.
- E trouxe essas malas só pra elas conhecerem o mar?
Antonio até olhou nos bolsos, mas não encontrou desculpas sobrando.
A viagem transcorreu em paz. Fã declarado da terra firme, Antonio acabou se acostumando à dança louca do mar e só uma ou duas vezes batizou o convés com o almoço ruminado. Maria, que passava os dias tricotando cachecoizinhos sem dizer palavra, com o tempo se dispôs até a papear.
Ao final de várias semanas, estranhando o clima quente incompatível com o inverno que esperavam, Maria resolveu saber de um tripulante se tinham previsão de chegada. Voltou à cabine um pouco intrigada: Nova Iorque ele diz que não sabe, mas no Rio de Janeiro a gente aporta amanhã.
Antonio, sossegado, nem se perturbou em abrir os olhos.
- Esquenta não, deve ser perto, de lá a gente aluga uma carroça – e voltou a atenção à soneca.
0 comments :
Postar um comentário