02/05/2008

A Velha Debaixo da Cama - Capítulo IV - Nove círculos



Vocês devem ter percebido que o rocambólico concurso a 100 dedos da piauí é o principal responsável pela presença de novos textos por aqui. De fato, ando relapso - como sempre fui - em relação à escrita de posts sem prazos ou incentivos financeiros. Se alguém se dispuser a depositar uma quantia periódica em minha conta bancária, prometo pensar em abandonar a preguiça. Enquanto isso, contentem-se com os deslocados capítulos de um folhetim imprevisível. Está aí a minha quarta tentativa:

A Velha Debaixo da Cama
Capítulo IV - Nove círculos

Pela primeira vez desde o primeiro dos passeios matinais, Maria viu Antonio sorrir. Achou que fosse pelos seus relatos nostálgicos, pelas peripécias do falecido coronel Mergulhão narradas com tanto brilho e dramaticidade, ó como ele era garboso, ó como era gentil. Tolice: o sorriso lento nada tinha a ver com suas palavras, que ele ignorava sem pudor, mas com o plano deliciosamente diabólico que acabara de elaborar. Pois se de morto Mergulhão passara a ex-finado, Antonio seria ex-fujão só pra papar os dez milhões que o coronel lhe tinha prometido, com a única e exclusiva condição de fazer a danada da velha sofrer. Ela não apenas sofreria: sofreria com estilo. Afinal, refletia Antonio, que mal havia em se divertir um pouco?

Arquitetou o inferno com uma cadência quase musical. Primeiro os movimentos lentos: adagio, andante, uma tampa do vaso levantada aqui, uma cueca abandonada ali. Se um dia acordava amável e carinhoso, no outro arrotava na cara das visitas. Aprendeu a roncar. Desenvolveu manias – expressões faciais, vícios verbais, obsessões pouco ortodoxas, hábitos sujos. Tudo bem dosado, tudo insuportavelmente calculado. Deu asas, rabo e chifres à imaginação e até ele se surpreendeu com a quantidade de aborrecimentos que era capaz de infligir, da culpa ao arrependimento, da vergonha à irritação.

Não era o bastante. Se seguisse bancando o chato de galochas, Antonio acabaria sendo posto pra correr, e não há nada mais patético que uma bunda jovem levar um pé da terceira idade. Maria de Maria não tinha que sofrer por ter escolhido o amante errado; precisava se sentir como o que era, uma senhora desgastada, uma velha obsoleta. Ele tratou de estimular a amarga sensação. Mexia os lábios sem falar, instigando uma surdez que ainda não existia. Sabotava seus guisados, errando a mão às escondidas e a matando de vergonha perante a vizinhança. Arregalava os olhos quando ela servia a janta (“Mas nós acabamos de jantar!”) e plantava a dúvida: distração ou Alzheimer? Maria cismava e Antonio adorava: para ele, dia após dia era primeiro de abril.

Não era o bastante. Maria ainda não se tornara a miséria humana que ele intencionava, o trapo triste e abatido a um passo do suicídio. Vez ou outra até sorria, o que, convenhamos, era um atrevimento. Ele, orgulhoso, só aumentava o repertório: ofensas, sarcasmos, carrapatos no travesseiro, assombrações simuladas, convulsões fingidas, piadas fracas, tudo era matéria-prima para abaixar o astral da velha. Só evitava ataques físicos porque, se por ventura ela quebrasse a bacia e precisasse ficar de molho por dois meses ou três, seria ele o incumbido de servir papinha naquela boca murcha.

Até que uma noite, irritado com a paz de espírito que Maria ainda aparentava, Antonio viu se farto e decidiu jogar a última cartada. Foi só no dia seguinte, um sábado calmo, clima ameno, poucas nuvens, que ele abriu os olhos e compreendeu, pelo cheiro, que talvez tivesse exagerado.

   Um comentário :

  1. 16 de maio eh o prazo para entrega do proximo capitulo! Vamula!

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Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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