Sinto desapontá-los, caros leitores, mas minha retrospectiva pessoal deste ano ficará desfalcada de aventuras austríacas. Claro, há sempre uma chance de que até dezembro uma orquestra vienense me contrate como tocador de tuba, mas a considero remota. É hora de encarar a cruel realidade : Salzburg, berço de Mozart, sediará em maio a final do Campeonato Mundial de Aviões de Papel envolvendo competidores de 48 países, e, apesar dos esforços de mineiros, cariocas, pernambucanos e gaúchos, todos os representantes que o Brasil vai mandar pra lá serão paulistas. Ê vida.
Minha breve carreira de piloto de aviões de papel teve início no final do ano passado, quando fiquei sabendo que a Red Bull estava organizando um campeonato. Não só participei da seletiva regional, realizada no ginásio do Barroca Tênis Clube, como ainda conquistei o primeiro lugar na categoria vôo acrobático, graças às piruetas malucas conseguidas meio na sorte, com um aviãozinho improvisado. Além da glória suprema de me tornar campeão de um esporte tão insólito (Cheguei até a recusar entrevista pra Rádio CBN. Sério!), garanti também o direito de participar da seletiva nacional em São Paulo, de onde sairiam três brasileiros para a final mundial na Áustria.
Foram meses de intensa expectativa até o dia da final, bem adequadamente marcada para um Primeiro de Abril. A pressão excruciante exercida sobre minha pessoa era contrastada com a mais absoluta falta de treino: passaram-se as férias, voltaram-se as aulas, e a primeira vez que fui pegar num papel com o intuito de fazê-lo alçar vôo foi na quarta-feira anterior ao campeonato, que aconteceria num sábado. Minha aula terminou mais cedo e tirei o resto da manhã para desenvolver os modelos mais precisos e elaborados que poderiam carimbar meu passaporte para a Áustria.
Tarefa complicada: a pequena sala de visitas do meu apartamento não permitia os loopings maravilhosos ou os rasantes espetaculares que eu pretendia testar, e a garagem do prédio era um misto danoso de pilastras e correntes de vento que pouco ajudavam. Ao final da manhã, separei em cima do sofá os dois modelos menos piores que criei. Era com o primeiro deles, que posteriormente batizei de Chuck, que eu havia conquistado o título de campeão mineiro. Na época, por sorte, decidi guardar a aeronave origâmica como memorabilia, e, embora ela não voasse mais com a desenvoltura de outrora, bastaram alguns minutos de engenharia reversa para que eu aprendesse a reproduzir suas dobras com exatidão. Já o segundo aviãozinho voava de forma um tanto instável, às vezes girava em torno de si mesmo, às vezes planava e embicava direto pro chão. Foi carinhosamente apelidado de Norris.
Uma coisa que eu estava deveras curioso para descobrir era qual seria o perfil dos competidores de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Que tipo de gente participa de um campeonato de aviões de papel? Dos mineiros eu já sabia: tinham todos entrado por pura farra, e ganhado por pura sorte. Assim eram os três caras da PUC e os três da Uni, eu incluso, que representariam Minas no inusitado torneio. Mas vai que o pessoal dos outros estados foi contaminado por uma obsessão sem tamanho, treinou horrores e vai me fazer passar vergonha em rede nacional?
Gaúchos e cariocas, logo pude conferir, estavam no mesmo barco que a mineirada. Legítimos representantes da filosofia que pregava o Fabrício, competidor belorizontino de melhor tempo de vôo: “
O segredo do sucesso é o total despreparo”. Valia mais a diversão: enquanto esperávamos a turma de Recife dar as caras, tiramos trocentas fotos, tomamos chimarrão com o pessoal de Porto Alegre, discutimos as notórias diferenças de sotaques que permeava o grupo. Como um gaúcho que me disse:
- Bah, se a gente pousasse ia ser ouro...
Quando perguntei: “quê que é ouro?”, ele me esclareceu: “é tri!”. Ah, bom.
Foi um dia de atrasos: depois do atraso do nosso vôo e do vôo dos pernambucanos, veio o atraso-mor, quando o ônibus que nos transportaria de Congonhas pra Jundiaí furou o pneu. Valeu pelo ineditismo de se ver um pneu de ônibus ser trocado ao vivo, e pela integração da galera, acentuada pela demora sob sol quente. A espera acentuou também um sentimento de união contra os paulistas, aqueles malditos que já deviam estar há horas no local do campeonato, treinando e fazendo reconhecimento de campo.
Mais acentuada ainda estava a fome. Durante a viagem às margens nada plácidas do Tietê nós concedemos entrevistas, trocamos MSNs, conversamos à beça, mas comida que é bom, necas. Chegamos varados de fome ao nosso destino final, o hangar da TAM em Jundiaí, e até a gente comer, beber e vestir as camisas da Red Bull que nos foram presenteados, o horário de treino já tinha terminado e o campeonato estava em vias de começar. Aí foi correria pura, todo mundo fazendo aviãozinho, tacando, medindo, testando, mesurando, analisando milimetricamente, enquanto o paulista mala do microfone apressava todo mundo pra começar logo a bagaça.
Não adiantou, só deu paulista. Pra se ter idéia, na minha categoria, melhor acrobacia, os cinco primeiros lugares eram de São Paulo ou Campinas. Rolou um boato de que a Unicamp construiu até câmara de ar pra neguinho treinar. Eram os japas que eu mais temia, e foi um deles que ganhou, daqueles japas que olham pro papel e o avião já se dobra sozinho. O cara fez um looping que nem era lá muito brastêmpico, mas tinha pleno controle da manobra que iria realizar, e recebeu um 10 unânime de todos os jurados. E, ao que parece, fez o avião ali na hora, desbancando tantos que tinham trazido aviõezinhos prontos de casa (melhor acrobacia era a única modalidade que permitia isso, os outros montavam na hora, assim na pressa). Ironicamente, todos os que levaram aviões pré-fabricados tiveram resultados pífios.
Meus Chucks e Norris também não fizeram boa campanha. O primeiro foi até razoável, ganhou um 6,16 quando a melhor nota até então tinha sido um 7. Mas na hora do segundo lançamento... agora ou nunca, um lançamento de aviãozinho pode me valer uma viagem internacional, todo mundo me olhando, paulistas torcendo contra, câmeras focalizando meu rosto... e eu vou e tiro um mísero 3,3. The dream was over.
Fiquei então torcendo pra que, pelo menos, alguém do nosso ônibus ganhasse alguma coisa. O máximo que conseguiram foi uma subida ou outra ao pódio. Marco Aurélio, competidor belorizontino de melhor distância, chegou até a liderar a prova por um tempo, mas foi rapidamente ultrapassado por um sujeito chamado Diniz, que venceu não só em melhor distância como também em melhor tempo. Resultado: o Brasil só enviará dois participantes para terras austríacas. O cara mereceu, não posso negar: ele foi o único que conseguiu fazer um avião ficar mais de 8 segundos no ar, e voar mais de 30 metros de distância. Levou família, treinou à beça e dava pra ver que estava feliz.
Tudo bem, tudo bem. Eu também saí no lucro, viajei pra São Paulo, conheci um bocado de gente do país inteiro, ganhei mochila, camisa, red bulls, lanchinhos mil, lanchão no pizza hut do aeroporto, e the best of all: sem precisar desembolsar nada. O único tostão da viagem, ou melhor dizendo, o único tostinho, foi gasto numa esfiha em Congonhas, porque dormi durante o vôo e perdi o sanduíche distribuído no avião. Tem Red Bull na geladeira lá de casa até hoje. E uma mochila nova veio bem a calhar, precisava dar um tempo na véia de guerra surrada, que já me acompanhou por andanças eternas por ruas australianas e programas indígenas em mata fechada.
Fico agora na expectativa de realizarem uma Regata de Barquinhos de Papel em Dia de Enxurrada. Quem sabe ano que vem?