A Velha Debaixo da Cama - Capítulo V - O porão
Chegou a minha vez de contribuir com a insólita trama de "A Velha Debaixo da Cama", obra escrita aos pedaços e publicada mensalmente na revista piauí, e que, dizem, será reunida em toda sua plenitude na edição natalina do periódico.
A edição 21 da piauí já está nas bancas e conta com o capítulo 5 de minha autoria, "O Porão". Antes, um resumo da ópera até agora. O capítulo em questão você confere logo abaixo e aqui também.
Resumo da obra: Antônio, o ex-garoto de cabaré que vive sob o jugo insaciável da viúva Maria de Maria Mergulhão, recebe uma carta que põe a pique seus planos de fuga para a liberdade. A carta parece ser do coronel Mergulhão – portanto não defunto como se pensava –, que propõe a Antônio uma fortuna em troca de sua permanência ao lado da viúva. Condição: fazê-la sofrer o quanto possível. Em busca de uma explicação para missiva tão misteriosa, Antônio vai fuçar num baú o passado de Maria de Maria e encontra a foto de um homem. Guarda-a e vai se olhar no espelho. Estremece.
Capítulo V - O porão
Antônio analisa a porta de madeira carcomida. Está ali parado há dez minutos, estranhando a casa, juntando coragem. Faz que vai bater, desiste no meio do caminho, desiste de desistir. Três toques breves bastam para que, ao colar o ouvido no mogno, já escute o ruído dos chinelos.
Havia andado o dia todo pra chegar até ali. Atravessara fazendas, cruzara riachos e por duas vezes quebrara a cara: a primeira quando entrou na casa de um senhor, proseou e tomou café, xingou e abraçou, e descobriu que não era ele o procurado; a segunda quando invadiu as propriedades de uma mansão, achando errado, e foi posto pra correr por perdigueiros pouco amistosos.
Mas agora tem certeza, e é essa certeza que tanto o incomoda. Pois é simplesmente inconcebível que essa casa velha seja o “lar, doce lar” do ilustre e ex-finado coronel Mergulhão.
– Pois não – diz o velho, cortês. Bate os olhos no rapaz e troca de feição. – Ah. Entra.
Antônio segue o velho – que mais podia fazer? Observa como ele anda: curvado, as pernas arqueadas, os passos descompassados de um pingüim. Mesmo corcunda, é mais alto que ele; ainda que trôpego, traz no rosto uma firmeza que o imberbe Antônio sequer já vira pessoalmente. Sem falar, é claro, na serenidade imponente do bigodão grisalho.
– Senta – manda o velho, sentando-se também. Depois dá um sorriso, como quem se diverte com a ansiedade alheia. Intimidado pelo olhar, é Antônio quem fala.
– Recebi sua carta.
– Eu sei. Você não estaria aqui por outro motivo.
– Na verdade, eu vim mesmo foi por outro motivo.
– Você veio porque duvida de um velho que já morreu. Não tiro sua razão.
– Olha, eu só queria...
– Deixa eu te mostrar um negócio.
O velho tem dessas. Levanta e vai, os outros que andem atrás.
Se por fora a casa é triste, por dentro é só inexpressiva. Nenhum quadro nas paredes, nada de adornos, pintura chocha. O quarto onde entram deve ser o dele. O colchão não está no chão, nem faltam as cobertas; mas aquilo está longe de ser a vida boa alardeada na correspondência.
O velho abre o guarda-roupa e puxa no piso uma tábua solta. Antônio esfrega os olhos – são degraus que vejo ali? – e acaba indo atrás do homem escada abaixo.
Leva um choque. O porão oculto sob o casebre esconde tanta coisa que Antônio não sabe onde prender o olhar: nas espingardas na parede dividindo o espaço com obras de arte, nas prateleiras acomodando livros antigos, na poltrona convidativa no meio da sala, na caixa de uísques chamando pro abraço. Vê o cofre metálico num canto e não duvida que ele possa abrigar os dez prometidos milhões. Nem precisa que o velho explique. Sabe que é ali o seu refúgio, seu canto escolhido para morrer sorrindo.
– Belo esconderijo – diz Antônio sincero, sem a ironia que a frase aparenta. – Mas olha, realmente eu vim pra outra coisa.
Tira do bolso a foto amarelada e o velho ri.
– Achei que ela guardasse essas coisas com mais cuidado.
– Ela guarda, eu é que sou atrevido. – Mostra o verso com o recado manuscrito, “De quem não consegue mais viver sem teu perdão”, e emenda: – Que quer dizer isso?
O velho é seco.
– Usou a palavra certa: atrevido.
– Coronel – Antônio o chama pela patente, pela primeira vez. – Tenho motivos para acreditar que o senhor manteve um relacionamento extraconjugal durante seu casamento e que eu...
A campainha interrompe o discurso, mas o velho vê com naturalidade.
– Faça um favor e abra lá pra mim. Deve ser o rapaz que pago pra ficar de olho em você.
Antônio sobe com raiva. Sente-se frustrado; “esnobado” definiria até melhor. Encara a porta de mogno e decide espiar pela greta antes de abrir.
Estremece, então: é Maria de Maria.
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