26/12/2020

Olá, amigão


Você tem 19 anos e cria um blog. 

Ter um blog, nessa época, é a coqueluche do momento. Inclusive, é uma época em que expressões como "coqueluche do momento" ainda não caíram em desuso completo. Ou talvez seja só você, que se agarra a gírias antigas da mesma forma como ainda não largou mão do Nokia 5120 tijolão que carrega no bolso. Todo mundo já migrou para flipfones menos você. E um monte de gente já criou o próprio blog menos você. Chegou a hora, você diz.

É um tempo em que o Google já matou o Cadê, mas as pessoas ainda digitam URLs na barra do navegador. Esse navegador, na maioria dos casos, é o Internet Explorer. O pessoal mais moderno usa Firefox. Você sabe de cor endereços complicados como dábliu dábliu dábliu ponto geocities ponto com barra área cinquenta e um não sei das quantas e números mil. Você organiza meticulosamente a sua pasta de Favoritos, para nunca mais perder de vista os endereços compridos que não conseguiu memorizar. Anos depois, metade já virou página de erro 404. A internet é assim. Nada dura para sempre, as coisas mudam o tempo todo e cada ano vale por sete. 

Criar um blog é tipo adotar um cachorro. No início, o bicho é frágil e requer constante atenção. Você dá a ele uma casinha que não é lá grandes coisas. "Blogspot ponto com" não tem o mesmo status de um "ponto com ponto br", mas pelo menos é grátis. Pra um estudante de 19 anos, pagar hospedagem de um blog está fora de cogitação. O nome é mais importante, e você escolhe "Biselho". Não é bonito, ninguém sabe o que significa, mas é diferente. É único.

Você alimenta o bicho diariamente. Tem tempo pra isso: a faculdade só ocupa as suas manhãs, e você pode dedicar o resto do dia a tocar violão, assistir filme em VHS e escrever textos novos para o recém-nascido Biselho. Você fica feliz quando as pessoas deixam comentários elogiando. Dá uma satisfação ver esse bicho de nome estranho fazer outras pessoas rirem, mesmo que sejam quase todos seus amigos. Às vezes aparece alguém que você nunca viu na vida e deixa ali um comentário positivo. Não perguntam se o seu blog tem telefone, mas é como se fosse.

Mas a vida passa. E de repente você não tem mais metade do dia livre para dedicar ao pequeno Biselho, que já acumula centenas de posts e nem é mais tão pequeno assim. Agora tem estágio, depois arranja um emprego, a vida social fica mais agitada e os passatempos viram outros. De vez em quando alguém pergunta: e o Biselho?, e te bate aquele sentimento de culpa. Você imagina o bicho magricela, morrendo de solidão numa casinha às moscas. Você volta pra casa, liga o computador, faz um carinho no bicho, escreve uns posts. Ele abre um sorriso e você também.

Até que um dia, do nada, você se muda para o outro lado do mundo. E o seu Biselho, que em idade bloguina já é adulto e emancipado, fica de lado de vez. Você passa a cuidar de um novo bicho, um pequinês que atende pelo nome ainda mais esdrúxulo de "Boca de Gafanhoto". O ciclo, no entanto, é o mesmo: no início, cuidados diários; depois, a vida fica mais atarefada e os textos se tornam cada vez menos frequentes. De vez em quando você dá uma olhada no Biselho e até o alimenta com um textinho ou outro, coisa pouca, só pra ele não ficar faminto. Só pra você não se sentir tão culpado.

Você vai embora da China e, mostrando não ter coração, abandona o pequinês para sempre. Mas tampouco volta a cuidar do Biselho, seu velho amigo, que a essa altura é um blog de meia-idade a quem só restam as memórias antigas. Sua atenção se volta a bichos mais novos, mais atraentes. Vídeos no YouTube. Podcasts. Parece até aquela outra época, anos atrás, em que você esqueceu o jovem Biselho por alguns meses pra cuidar de um irmão mais novo que atendia pelo nome de "fotolog". Esse morreu cedo, tadinho.

Um dia, com o Biselho já com o pé na terceira idade, você se sente nostálgico e resolve lhe dar um pouco de atenção. Começa com um trato no visual, umas fontes novas, um layout menos antiquado. Passa a alimentar o bicho com textos quinzenais – não é muito, mas nessa idade ele já nem precisa de tanto. Ter um blog, a essa altura, é um troço meio ultrapassado. As pessoas agora escrevem textões no Facebook, que geram brigas familiares e depois desaparecem no buraco negro da timeline. Empresas têm blogs, mas esses abrigam textos genéricos, robóticos, em que frases repetitivas disputam a sua atenção com anúncios animados e pop-ups que te atacam de repente. Das pessoas que ainda têm blog, quase ninguém usa Blogspot mais. 

Mas você não dá bola para os WordPresses e Mediums de hoje em dia, deixa o Biselho no lar onde nasceu e vai cuidando dele aos trancos e barrancos. Até que a vida entra no meio novamente – e, como já aconteceu dezenas de vezes nesses anos todos, o bicho volta a ficar largado. O último texto é sobre os seus discos favoritos de dois anos atrás. Você percebe que o blog passou 2019 sozinho e você nem deu bola. E que ele ainda atravessou um ano de pandemia e quarentena na mais completa solidão, só recebendo visitas ocasionais de desconhecidos que pintavam por acaso. Um bicho abandonado numa casinha velha, com uma aparência anacrônica, o mesmo nome estranho na coleira e uma memória de elefante, guardando detalhes de coisas que você escreveu quinze, dezesseis anos atrás.

E aí num fim de ano cinzento, você resolve digitar aquele velho endereço na barra do navegador, aperta o Enter e ele te encara com um sorriso de canto de boca e uma cara de quem diz: "Eu sabia que você ia aparecer qualquer dia desses". E você responde: "Olá, amigão", e promete que não vai ficar mais sem dar um oi por tanto tempo assim. 

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Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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