08/02/2024

O Símbolo Proibido - Um conto sem a letra A

Velhos leitores do Biselho conhecem o texto que escrevi em 2005 sem o uso do primeiro símbolo de nosso léxico. Hoje, dezenove invernos depois, publico um novo exercício lítero-restritivo: um conto inteiro omitindo esse mesmo símbolo. Desfrutem!


Me lembro como se fosse ontem.

Início de noite, depois do expediente. Ligo o televisor com o mero intuito de ver o jogo. Pro estresse diminuir, só mesmo futebol no monitor e uísque no copo; o resto, que fique bem longe. O noticioso, sobretudo, com seus vídeos deprimentes, descrições de crimes horrendos e infortúnios mil, me produz enjoo. E, nos últimos meses, só vejo informes escritos por plumitivos do próprio governo, dizendo como o glorioso poder régio constitui o último resquício de ordem e equilíbrio em nosso reino. De como motineiros violentos, que escrevem bordões nocivos nos muros dos municípios, querem desunir o povo, difundir o terror, destruir o bem comum.

Que porre.

Direciono o controle remoto pro televisor e ponho no futebol. O confronto é entre meu time do peito e um oponente bem pior, e comemoro o escore de um versus zero logo nos primeiros minutos. Encho outro copo de uísque depois do segundo gol. No terceiro, estou levemente bêbedo, e nem me enervo com o verboso locutor, como frequentemente ocorre.

Me irrito, porém, no momento em que o jogo é interrompido bem no meio por um súbito discurso do rei. Ele veste o indumento de sempre, um uniforme preto e roxo com o escudo régio no centro, e lê um texto impresso que tem em posse.

“Meu queridíssimo povo”, diz, em tom cortês, o homem que ordenou o sumiço de inúmeros opositores, “desculpem-me por interromper o vosso divertimento, e prometo que serei breve. O motivo do meu discurso de hoje é simples. Tendo em mente os copiosos tumultos promovidos por desordeiros e revoltosos, esses seres desprezíveis que pretendem demolir os nossos princípios, que pervertem convicções de nosso povo fiel, e que poluem os muros públicos com seu símbolo sórdido” – e nisso surge no televisor o velho e conhecido ícone do grupo rebelde, um círculo envolvendo o primeiro item do conjunto de signos com que se escreve o nosso léxico –, “decidi, depois de um concílio com meu fiel primeiro-ministro e nosso honroso Congresso, que, desde hoje, proíbe-se o uso do símbolo que precede o B. Todos os livros e textos, colóquios e documentos, no meio físico ou no eletrônico, podem seguir usufruindo dos outros vinte e cinco símbolos – suficientes, como demonstro neste modesto discurso de meu próprio punho, no objetivo de exprimir todo tipo de conteúdo que nossos intelectos entenderem úteis. O símbolo subversivo morre hoje, o que me enche de júbilo. Deixo vocês, meu povo querido, prosseguirem com o seu entretenimento noturno, sendo ele futebol, filme ou folhetim.”

Hein?, me pergunto, os olhos fixos no televisor. O que foi que eu vi? Um chiste vindo do líder-mor de nosso território? Um dublê idêntico do rei, confundindo o público com fins humorísticos?

Um pouco tonto com o uísque, fito o futebol que ressurge no monitor. O esporte em si prossegue do mesmo jeito; o locutor, contudo, tornou-se sucinto. De tempos em tempos, diz somente o nome de um dos indivíduos em jogo:

“Zezinho... Sérgio Lopes...”

Ou, com extremo comedimento, exibe esforço concebendo termos propícios:

“Ele é um... um excelente goleiro... que... bem...”

E no momento em que meu time obtém outro tento, ele estende o termo “Goooooooool” por longuíssimos segundos, como que querendo preencher o silêncio, e depois prossegue, inseguro:

“Que lindo gol! Foi ótimo... foi muito bonito! Digno de... de um mestre. Excelente gol!”

Perplexo e meio grogue, tento digerir o que vejo. Relembro outros decretos esdrúxulos que o governo implementou recentemente, proibindo vestidos de cores fortes, composições com versinhos obscenos e livros juvenis de conteúdo tido como impróprio. Foi possível se cumprirem todos esses vetos, com os numerosos membros do Regimento Repreensor exercendo seu poderio sobre os infringentes. Extinguir um símbolo ubíquo como o que precede o B é decerto um empreendimento custoso; porém, tendo em mente o enorme segmento do governo incumbido de conferir se leis e editos têm o respeito irrestrito do povo – zilhões de censores peritos em reconhecer e suprimir o que se considerou ilegítimo –, vejo que é possível o veto de hoje, mesmo que ilógico, ser cumprido com êxito.

Pego meu dispositivo móvel e resolvo conferir se o que vi no televisor foi simplesmente um sonho grotesco. Entro no site de um periódico e confirmo que os títulos e textos seguem o decreto do rei. Digito o endereço de um microblog e ocorre o mesmo. Tento escrever um bilhete eletrônico no meu grupo do futebol e todos os botões produzem o efeito previsto, menos o do símbolo que o rei tornou ilícito.

Nesse momento sem precedentes, é impossível compreender por completo que efeitos esse imprevisto desígnio régio pode produzir no futuro.

Vinte verões depois, porém, sei muito bem o que se sucedeu.


***


“Meu nome é Gregório e tem vinte e nove meses que só bebo líquidos de zero teor etílico”, digo pro grupo disposto em círculo, muitos rostos conhecidos, outros novos.

“Nossos cumprimentos, Gregório”, respondem eles, com sorrisos condescendentes e olhos tristes. Devem sentir que estou mentindo.

Só topei perder o domingo neste encontro tedioso por um compromisso que firmei com Denise. É isso ou prescindir do direito de ver o Pedrinho, o que em nenhum momento pretendo permitir. O nome do grupo mudou: “Ébrios Incógnitos” é o que diz o letreiro, fugindo do siglônimo prévio com o símbolo proibido em dobro. O espírito segue sendo o mesmo: reunir bebedores incorrigíveis como eu, no esforço de extinguir nosso vício. Comigo, pouco tem tido efeito. Sem os drinques, como digerir este mundo de hoje?

“Meu nome é Ingrid”, ouço um dos novos rostos dizer. “Eu bebo desde que... desde que...”

É comum, sobretudo em quem precede o Veto Lítero em muito tempo, que se continue com bloqueios no expor de conceitos. Percebo isso em Ingrid: seus olhos se movem em diferentes direções e seu timbre é incerto, como se um erro ínfimo pudesse ser mortífero.

“Desde que... enfim. Desde o Veto”, prossegue. “Sem conseguir dizer o que penso... só me restou beber. Hoje tem quinze... bem... um quindênio que suspendi os drinques.”

“Nossos cumprimentos, Ingrid”, repetem os outros, como robôs monocórdicos. Miro Ingrid e lhe sorrio. Meu gesto é correspondido. Em seus olhos verdes, percebo timidez e um pouco de medo, o que é corriqueiro num contexto destes.

O encontro é concluído e Ingrid some celeremente, sem que troquemos outro sorriso. Meio jururu, sigo meu próprio curso.

Tem uns vinte minutos que o sol se pôs e poucos veículos se movem pelo centro. Sempre que percorro este ponto do município, me vêm em mente os frequentes e violentos protestos de tempos remotos, com o objetivo utópico de depor o rei. Hoje, com vinte invernos de vincos no rosto, ele segue no poder com o mesmo vigor. De seus oponentes e críticos tem-se zero conhecimento – incluindo o velho primeiro-ministro, que se mostrou menos fiel do que o rei pôde consentir. O termo “protesto”, mesmo que respeite o Veto e continue existindo nuns poucos livros puídos, dificilmente é proferido pelo povo comum.

Olho pelo vidro de um pequeno empório que vende comes e bebes por preços imódicos. É só o custo excessivo que me impede de pedir um vinho tinto ou dois, pois o desejo segue o mesmo. Esplêndido: vendem produtos etílicos pertinho de um núcleo do E.I.

Me controlo e sigo em frente; lembro que, noutros tempos, este mesmo ponto foi um comércio de livros – um tipo de negócio extinto. Nos primeiros meses pós-Veto, houve diversos “volumes reescritos”, com títulos como Um Século de Solitude, Elise no Mundo dos Fenômenos e Um Giro Pelo Globo em Dois Meses e Meio. Seu sucesso foi efêmero e coincidiu com o surgimento de dispositivos móveis munidos de entretenimento infinito: vídeos em três dimensões, jogos imersivos, sons psicodélicos, tudo com o consentimento do governo e sem muito conteúdo escrito. Hoje, pouquíssimos leem; eu, mesmo, só os contos pueris que recito pro Pedrinho depois que o sol se foi.

Dizem os eruditos – todos servidores régios – que o Veto Lítero destruiu “somente” quinze por cento do léxico. Possivelmente foi o dobro ou três vezes isso; é impossível medir o número correto. Um vintênio foi suficiente pro meu cérebro esquecer o grosso desse repertório. Me lembro de uns termos, um número ínfimo, cujo sumiço me dói, mesmo que hoje soem como se fossem de um sonho inverossímil, ou de um mundo longínquo. Me sinto meio burro, meio impotente. Meio indiferente.

O edifício onde Denise vive com seu novo cônjuge, um certo tenente Miguel, é bege e feioso como todos neste setor. Chego no sétimo nível com o suor escorrendo: só os residentes, impreterivelmente membros do governo, podem usufruir do veículo condutor que sobe e desce pelos pisos do prédio.

Denise me recebe como sempre:

“Louvor eterno pro nosso sublime rei!”

“Oi, Denise”, respondo, seco. “O Pedrinho comeu? Pode ir comigo?”

“Sim.”

Meio minuto depois, ele surge com um sorriso no rosto, vestindo um suéter preto e roxo que deve ter sido presente do tenente. Sujeitinho xexelento, querendo converter meu filho num mini-títere do rei.

“Genitor!”, ele vem correndo e me envolve, contente. Confesso que me bole ter que ouvir esse termo cediço em vez de outro, hoje extinto, que Pedrinho desconhece.

“E os encontros do E.I., Gregório?”, Denise me inquire com olhos céticos.

Tiro o documento do bolso e lhe mostro todos os selos, o último com o número de hoje. Me despeço com um meneio silencioso e desço com Pedrinho. Penso em Denise jovem, inteligente, prenhe de lucidez. Hoje, é nítido que se tornou veementemente pró-governo, pelo menos no exterior. E no íntimo?, me pergunto. Mudou mesmo?

No cômodo de hóspedes do meu domicílio, pego um livreto e leio pro meu filho. Pedrinho ouve com interesse.

No meio de um bosque viçoso, vive um trio de porquinhos. O primeiro, residente de um quimbembe feito de feno, é muito preguiçoso e dorme o tempo inteiro, sem exercer nenhum ofício. O segundo, que vive num cubículo composto por enormes troncos de cedro, é ocioso como seu vizinho. O terceiro porquinho, porém, é muito esperto e construiu um sítio enorme com tijolos e pedregulhos. Seu sorriso só some se ele ouve dizer que um lobo perverso, cujo único objetivo é deglutir os leitões sem que sobrem restos, foi visto por perto.

“Genitor”, diz Pedrinho, curioso, “e se ele comesse legumes, por exemplo? Por que o lobo tem que ser ruim e comer os porquinhos?”

“Tem gente que só tem seus próprios interesses em mente”, respondo. Ele encolhe os ombros, como se dissesse: que mundo esquisito, e dorme sem esforço. Eu, por meu turno, sigo merencório por um tempo e vejo que me é difícil resistir: vou no pequeno depósito de provisões em meu domicílio, pego um uísque e digo “oi” pro meu velho vício.


***


No encontro seguinte dos Ébrios Incógnitos, só consigo deter os olhos em Ingrid. Observo seu rosto tímido, seus longos cílios e resplendentes olhos verdes. Escuto seu timbre doce, porém firme, como se escondesse um explosivo dormente. Contemplo seu jeito genuíno, sincero, e me envergonho de mim mesmo, descuidoso com meu etilismo e escondendo-o dos outros.

Findo o compromisso, venço o receio, chego perto de Ingrid e ouso propor-lhe um convite: “Quer dividir um sorvete?”. 

Contente, recebo um sorriso e um sim.


***


Dois sorvetes e dois sucos depois, é como se nos conhecêssemos desde muito tempo.

“Esses nomes de frutos...”, diz Ingrid, percorrendo o menu. “Dos nomes velhos, só existem uns poucos hoje. Pêssego, coco, figo... e...”

“E temo que é só isso”, completo.

“Esse negócio de fruto-do-vinho, fruto-dos-símios... eu considero meio esquisito. Tudo é esquisito. O nosso próprio jeito de nos exprimir hoje é esquisito.”

Olho em meu redor, receoso de que outros clientes nos escutem; Ingrid repete meus movimentos desconfiosos. Vemos somente um senhor com seu netinho, e três mulheres discutindo entre si seus flertes recentes.

Resolvo usufruir do momento e, intrépido, pergunto se Ingrid tem um cônjuge, um consorte. Seu suspiro, imprevisto e pungente, me descreve tudo.

“Ele sumiu depois do Veto Lítero”, diz num sussurro. “Isso tem... dezenove verões.”

“Sinto muito”, é só o que posso responder.

“E você?”

“Solteiro. Quer dizer... sofri um divórcio. Tenho um filho pequeno, que vejo menos do que quero.”

“Sinto muito”, Ingrid repete o que eu disse, e põe seus dedos sobre os meus.

É Ingrid, em vez de mim, quem sugere irmos num recinto menos público.


***


Em seu leito, depois de desejos reprimidos sucumbirem num sexo terno, discorremos sobre nossos respectivos conúbios. Conto de Denise, e de como me deprime ver que, presumivelmente, perdeu o tino do que é direito e foi se unir logo com um pelego do rei. Ingrid estremece só de ouvir. Descreve, sem muitos pormenores, o momento desditoso em que o esposo foi pego por olheiros do governo, suspeito de ser um dissidente e de urdir complôs insurgentes. Isso simplesmente porque conservou o costume de escrever versinhos – líricos, inocentes – retendo o léxico pré-Veto, com símbolo proibido e tudo.

“Mergulhei nos licores e nos coquetéis”, diz Ingrid. “Deixei de ter interesse em tudo. Em viver. Em... sentir.”

“Te entendo bem. Foi como fiquei. Pelo efeito dos drinques, decerto. Creio, porém, que o encolhimento do léxico me tornou... inepto. Deixei de exprimir meus sentimentos por muito tempo. E isso me fez, consequentemente... sentir menos.”

O rosto de Ingrid contém expressões difíceis de ler, e me preocupo com o silêncio que se segue. Vejo, enfim, que pingos de choro escorrem de seus olhos. Depois de longos minutos, diz:

“Eu sou como você. E o que é pior: o único sentimento que experimento sempre é o de ter perdido... o meu próprio ser. Meus elementos únicos, exclusivos.”

“Você segue sendo um indivíduo único, Ingrid. Cem por cento único.”

“Eu sinto que deixei de ser mulher, Gregório. Que hoje só sou um ser do gênero feminino, como eles dizem. Tendo que proferir os termos ditos ‘neutros’ que o governo me impõe. Mesmo que sempre terminem em ‘O’. Estou esgot...”

Ingrid interrompe o termo no meio, percebendo o erro por um triz.

“Estou... estou...”

E, logo depois, se emudece. 

Dou-lhe um beijo doce e sinto o gosto do cloreto de sódio em seu rosto úmido. Seus membros superiores me envolvem. Podem ser impressões precoces, porém noto que sinto um quê de bem-querer – o que, inclusive, me surpreende.


***


O vício me persegue, bem como o remorso. Todo gole é delicioso e doído. Me controlo se estou perto de Ingrid, que me incute o desejo de ser um sujeito melhor. Com quem me sinto bem.

Com Pedrinho, contudo, sou menos prudente e tomo meu uísque num recipiente encoberto que finjo ser do líquido inodoro e insípido. Vemos juntos o futebol e tenho orgulho de ver que meu filho torce pelo meu clube com o mesmo fervor que eu, independente do desfecho ruim do jogo. Depois do término, porém, estou tonto e me irrito ouvindo ele dizer “genitor”.

Impulsivo, resolvo lhe expor um pouco de conhecimento.

“Em tempos remotos, filho, houve outro termo muito comum em vez de genitor. Só que esse termo, de três símbolos – P no começo, I no fim –, deixou de existir.”

Ele percebe que estou triste, sem entender por quê.

“O símbolo do meio”, continuo, “se tornou proibido. Você conhece o símbolo proibido?”

Sossegue, Gregório, ouço meu superego me dizendo no ouvido, e o ignoro.

Pedrinho, evidentemente, desconhece do que me refiro.

“É como um V, meu filho, só que invertido. E com um risco no meio. Desse jeito, ó”, e escrevo o símbolo com o dedo.

Ele segue confuso.

“Por que esse símbolo é proibido, genitor? É um gesto feio de se ver? Que nem erguer o dedo do meio?”

“Nem é isso, filho. É um símbolo bonito, que tem um som... como dizer? Desimpedido. Livre. Que requer que os músculos do rosto se estiquem num sorriso.”

“Como é esse som, genitor?”

E eu, sem refletir sobre os efeitos do que empreendo, lhe mostro.


***


Envolvido pelo toque de Ingrid sob os cobertores, tento exprimir o sentimento que levo no peito.

“Meu tesouro”, digo. “Eu... te quero bem.”

Seu sorriso é receoso, como se eu tivesse dito um impropério. 

“Te quero muito, muito bem”, emendo, e ouço um suspiro em retorno.

“Eu idem, meu querido”, diz Ingrid.

Seguimos um pouco tristonhos, envoltos um no outro, os dois com pleno conhecimento do que nos compunge. Estou sóbrio e, em tese, sem ter em mim o impulso inconsequente de ontem, com Pedrinho.

Porém, surpreso comigo mesmo, digo: “Eu te...”, e me pego escrevendo o símbolo proibido com o dedo, seguido de um M e de um O.

Recebo um beijo longo e me derreto vendo Ingrid repetir os mesmos gestos. Somos dois rebeldes, dois loucos, dividindo um sonho que deixou de ser quimérico.


***


Num primeiro momento, seguimos comedidos, usufruindo do novo recurso somente de tempos em tempos, e sempre sob os lençóis – pois conhecemos, de ouvir dizer, numerosos rumores de microfones e dispositivos fílmicos escondidos pelo governo em prédios e domicílios. Escrevendo com o dedo índice, remimos do limbo verbetes de todos os tipos – os simples, os eruditos, mesmo os obscenos –, que enchem nossos colóquios secretos de um colorido novo.

Depois, destemidos, servimo-nos de objetos obsoletos, como tinteiros e versos de folhetos velhos, e redigimos longos textos onde o símbolo ilícito é visto o tempo todo. O que Ingrid escreve, eu leio, decoro e queimo, e o mesmo é feito com o que eu ponho por escrito. Sentimo-nos cúmplices de um conluio perigoso; isso, porém, dificilmente impede que continuemos produzindo nossos votos mútuos de bem-querer. Esqueço o uísque, o vinho tinto, o gim: Ingrid me embevece e é tudo de que preciso.


***


Estou com Ingrid, concluindo outro texto enternecido, no momento em que vejo o nome e o número de Denise no telefone móvel.

“Gregório?!”

“Oi, Denise. Tudo bem? O que houve?”

“Gregório, o que você fez? Pelo glorioso senhor nosso rei, Gregório, o que é que você fez?!”

Ouvindo seus soluços, sinto um frio nos ossos.

“Ele levou o Pedrinho, Gregório...”

“Quem levou? Levou onde?”

“O Miguel. Levou o Pedrinho pro centro de correções juvenis. Depois que... depois que descobriu...”

Sinto enjoo. Vertigem. Meu peito dói.

“Descobriu o quê, Denise?...”

“Você ensinou o símbolo proibido pro nosso filho, Gregório?”

É nesse preciso momento que Ingrid, o rosto lívido, o corpo tremendo, ressurge no cômodo e diz que tem gente no corredor, insistindo em me ver.


***


O pé-direito tem somente dois metros, e o cheiro do recinto é bochornoso, opressivo. Tenho os olhos roxos e os ouvidos doloridos. O homem de uniforme preto e roxo que me presenteou com os ferimentos repete os mesmos pontos:

“O senhor conhece todos os preceitos e diretrizes de nosso reino?”

“Conheço.”

“Entende que o símbolo que utilizou em seus textos escritos é proibido em todo o território e que seu uso constitui crime hediondo?”

“Entendo.”

“Percebe que instruir o seu próprio filho sobre esse símbolo foi um erro irremissível, e que o Pedro, bem como todos os condiscípulos do colégio com quem ele dividiu esse conhecimento ilícito, devem ser reinstruídos num instituto exclusivo do governo, sem o convívio de genitores ou genetrizes, por doze ciclos em torno do sol? E que o delito do senhor, um equívoco intempestivo, sem propósito, constitui um rompimento de segredo régio por motivo torpe, o que é punido com o corretivo supremo?”

Fico silente, um zumbido contínuo me remoendo os ouvidos.

“Percebe, senhor Gregório?”

“Percebo”, digo, enfim, por entre os dentes.

“E o que o senhor diz de tudo isso? Compensou se converter num delinquente depois de dois vintênios e meio de tempo vivo?”

“Onde... onde posso ver Ingrid?”

Seu rosto presunçoso me infunde nojo, e fico inquieto com o seu silêncio.

De repente, sinto um horror profundo, um medo súbito de ter sido iludido desde o início. E se foi tudo um embuste? E se o bem-querer que Ingrid me inspirou, e que me fez infringir o Veto Lítero sem refletir sobre futuros efeitos lesivos, foi fingimento com o intuito de descobrir subversivos dormentes?

O milico, porém, me exibe fotos que desmentem o temor que meu cérebro construiu. Confirmo que nosso sentimento de bem-querer e respeito é recíproco. Porém, choro vendo seu rosto ferido, seus olhos túrgidos, e me sinto culposo por ter lhe provido esse suplício. O sujeito de uniforme se ergue e some. Fico sozinho, vertendo pingos irreprimíveis, me preenchendo de ódio.


***


Me olho no espelho. Meu rosto é outro, ossudo, rugoso. Longos pelos cinzentos descem do meu queixo; os fios do coco, uniformemente níveos, constituem um testemunho de como envelheci. Levo os efeitos dos últimos dez ou doze ciclos celestes por todo o corpo.

“Livre”, ouvi dos homens de uniforme. Livre, depois de evos como preso político, metido num cubículo sem luz, sem informes de entes queridos, sem que me dissessem um pio sobre o mundo exterior.

O tempo infinito me possibilitou conceber um multiverso de eventos possíveis. Supus meu filho com boné de coronel e uniforme régio, o cérebro poluído pelos professores de um instituto podre. Vi, com vívidos pormenores, Ingrid sob o solo do cemitério – ou pior, sofrendo dores inconcebíveis pelo corpo e mente, e perecendo por dentro sem morrer.

Nos momentos menos depressivos, pensei em futebol. Inventei um torneio hipotético em que meu time venceu todos os jogos com engenho e virtuosismo, empreendendo dribles incríveis e gols mil. Em tempo nenhum, contudo, desejei um gole de uísque que fosse; se virei prisioneiro dos homens, me livrei, enfim, do vício.

Hoje, surpreendentemente, eles me dizem que estou livre. Sempre me lembrei do que o homem de uniforme preto e roxo me contou sobre meus crimes, e sempre dormi os períodos noturnos com o pressentimento de sofrer o dito “corretivo supremo” depois que o sol surgisse de novo. Um decênio inteiro veio e se foi. E eu fiquei.

Deixo o presídio confuso, sem entender por que estou sendo solto, sem que me expliquem nicles.

E, de repente, vejo Denise. 

Denise e um homem de bigode, bem-vestido, com feições que reconheço. Tenente Miguel?, é o que penso primeiro.

Chego perto. É Pedrinho. Homem feito, crescido. E com um sorriso que me ergue o espírito.

Ouço dele, em vez de genitor, o belo e curto termo que tem P no início e I no fim. Ele me exibe livros – volumes novos, visivelmente recentes – repletos do símbolo proibido. Olho em meu redor e vejo os letreiros públicos, onde o mesmo símbolo é exposto sem nenhum pudor.

“O povo venceu”, Pedro me diz.

“E foi o Pedro que começou”, sorri Denise. “Ele e os outros meninos do instituto. Em virtude do que você fez, Gregório. O mérito é de todos vocês.”

Sinto um misto de choque, orgulho e deleite. Por fim, pergunto:

“E... e Ingrid?”

Pedro estende o dedo no sentido de um veículo inconspícuo. Pelo vidro, Ingrid me vê. Meu peito se converte em um bumbo doido e veloz. Corro com fôlego de jovem, Ingrid desce, seu corpo vem em meu rumo. Nosso beijo tem o mesmo gosto de outros tempos; nosso choro, o mesmo tom.

Pedro vem e, com meu filho junto de nós, me sinto pleno. De longe, vejo Denise feliz.

E o que ouço de mim mesmo contém um verbo que, junto com inúmeros outros, nos foi reprimido por um rei estúpido e seus seguidores doentes desde que o Veto Lítero teve efeito. Nem dizer “tenho imenso bem-querer por vocês”, nem escrever com os dedos: neste momento eterno, posso esquecer truques e eufemismos e exprimir o que sinto incluindo o som sublime do símbolo que hoje, de novo, precede o B.


***

Lucas Paio é belo-horizontino e mora em Berlim. Já teve contos publicados na Piauí, Alcateia e Faísca. É co-criador da ficção colaborativa non-sense A Saga de Tião, que virou livro em 2020. Em 2021, publicou Cinema-Múndi: Uma viagem pelo planeta através da sétima arte. Também se aventura pelo mundo da música e dos curtas-metragens, incluindo o EP Sangria Desatada (2018) e a animação em stop-motion Revenge of the Corks (2016).

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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