29/08/2008

Terra brasileira



Pré-estréias são sempre legais. Além de geralmente rolar um agrado, um vale-combo pipoca e refri, às vezes um ou outro brinde surpresa (na pré de Superman - O Retorno, os fãs que vestiam a camisa do Super-Homem ganharam presentes. A minha do Chapolin não valeu de nada), é boa a sensação de ver o filme antes dos outros mortais, ainda mais quando o ingresso não pode ser comprado, só ganhado. Foi assim na última terça-feira, na pré-estréia belo-horizontina do brasileiro Linha de Passe.

Dirigido por Walter Salles (de Central do Brasil, Diários de Motocicleta e tantos outros) e Daniela Thomas (que, só hoje descobri, é filha do Ziraldo), Linha de Passe estréia por aqui dia 5 de setembro e narra o dia-a-dia de uma família paulistana, mãe e quatro filhos. A mãe é vivida por Sandra Corveloni, que ganhou até prêmio em Cannes por sua atuação. Os filhos foram escolhidos por testes, preparados em oficinas de atores pela célebre Fátima Toledo e não devem nada às outras interpretações. Há também algumas caras conhecidas, como Vinícius de Oliveira (o moleque de Central do Brasil, irreconhecível), como o filho que já beira os 18 e ainda sonha em ser jogador de futebol. Cabeludo e espinhento, fui perceber que era ele só quando vi o nome nos créditos finais.

Tenho uma certa queda por estudos de personagens. É aquela parte central de Náufrago em que o Tom Hanks está na ilha, aprendendo a sobreviver e conversando com uma bola; ou a primeira metade de Wall-E, onde o robozinho solitário nada faz além de catar lixo e colecionar trecos. Dão a impressão de que não tá acontecendo nada, mas acabam sendo muito mais interessantes do que se houvesse um vilão ou algo que o valha. Linha de Passe se encaixa um pouco no conceito, dividindo o tempo de tela entre os 5 personagens principais: Dario, aspirante a jogador de futebol; Dinho, frentista evangélico; Dênis, motoboy e pai por acidente; o caçula Reginaldo, que nunca conheceu o pai; e Cleusa, empregada doméstica, que tenta ser pai e mãe da filharada enquanto encara uma quinta gravidez. Semana que vem, faça o favor de levantar a bunda da cadeira, esquive-se de ver mais uma bomba do Adam Sandler e engula seu preconceito contra produções nacionais, porque o filme é bão pra caramba.

A cereja do bolo foi o bate-papo com a Daniela Thomas e a Sandra Corveloni após a exibição. Não tinha muita gente - são poucos os animados em discutir cinema à meia-noite de uma terça-feira - e talvez por isso tenha sido tão bacana. Abri a rodada de perguntas com uma dúvida sobre direção em conjunto: como é dividir a direção de um filme com alguém, sendo que dirigir normalmente é como escrever, uma tarefa autoral e solitária? Disse Daniela: é um caos. Mas explicou que acaba havendo uma divisão natural, ela fica mais com a parte da pré-produção, da escolha do elenco e locações, enquanto Walter Salles é "o homem do set", o cara que entende tudo de câmeras e lentes - chegando inclusive a operar a câmera em alguns takes.

O papo seguiu com várias histórias divertidas dos bastidores. Algumas situações reais evocavam cenas do filme: o teste do elenco, com milhares de candidatos, como as "peneiras" de jogadores de futebol das quais participa o garoto Dario; o ator Kaique de Jesus Santos, que viveu o Reginaldo, tão marrento no set quanto seu personagem; a Sandra disputando o papel da mãe com outra atriz, como sua personagem disputa a vaga de empregada. E os felizes acasos que não estavam no roteiro e acabam melhorando o filme: a cena da Bíblia no sofá, por exemplo, foi idéia do Kaique, que soprou a sugestão no ouvido do colega antes da gravação, sem contar pra ninguém.

Também aproveitei para sanar com a Daniela uma dúvida técnica: quanto do filme é dublado e quanto é o som real, captado na hora? Ela disse que uns 30% é dublado, o que é bastante. Cenas externas, ou dentro de ônibus, que sofrem com a barulheira ruidosa, tiveram seus diálogos totalmente refeitos em estúdio, às vezes meses depois. E é tranqüilo, ou o ator encontra dificuldade pra voltar ao personagem tanto tempo depois? Nada, é bem simples, ele escuta a voz-guia várias vezes e depois repete. Só teve uma cena em que percebi uma sincronia meio falha, o que nem se compara aos filmes nacionais de vinte anos atrás, de dar vergonha à turma do Chaves.

(Quem se interessa por curiosidades de produção, aliás, vá ler o Blog de Blindness, escrito pelo Fernando Meirelles sobre as filmagens do seu Ensaio Sobre a Cegueira. Que bem podia ter uma pré-estréia em BH também, hein, Fox Filmes?)

26/08/2008

Cale-se, cale-se



Tenho me empenhado em corrigir uma grande falha de formação, que é ter visto pouca coisa do Chaplin. Semana passada assisti quatro curtas do início de sua carreira: O Balneário, O Imigrante, Rua da Paz e O Aventureiro. Todos de 1916 ou 17, todos com duração de 25 minutos e todos muito bons. Esta semana foi a vez de um longa, Em Busca do Ouro ("The Gold Rush", 1925). Peguei uma cópia antiga em VHS, limpei o cabeçote do vídeo-cassete (usando a técnica de avançar e retroceder uma fita várias vezes, tão prosaica e funcional quanto soprar um cartucho de Super Nintendo) e assisti aos setenta e poucos minutos das aventuras de Carlitos na solidão branca do Alasca.

A primeira impressão não me saltou aos olhos, mas aos ouvidos: estranhei a trilha sonora. Ao contrário dos curtas, que casavam música e imagem de forma sincronizada, quase videoclíptica, a dramática trilha de Em Busca do Ouro, com seus órgãos e acordes tristes, funcionava razoavelmente para umas cenas e fracassava em outras. Sem falar nos momentos quase constrangedores em que a música terminava antes da cena acabar, ou seguia contínua entre um take e outro que não tinham nada a ver. Qualquer um que já editou um vídeo caseiro no Movie Maker sabe que a música de fundo pode mudar o sentido da cena, e em certas horas me vi obrigado a colocar a TV no mudo pra aproveitar melhor o filme. A coisa se torna ainda mais estranha quando se descobre que a trilha foi indicada ao Oscar - quase vinte anos depois!

O mistério tem sua explicação. O longa lançado em 1925 era completamente mudo (como eram todos feitos antes de 1927), e só ganhou trilha em 1942, para um relançamento nos cinemas. Foi essa trilha que concorreu ao Oscar em 43 (e perdeu para a de A Estranha Passageira), e é essa versão recauchutada do filme que está nos DVDs de hoje em dia. A versão calada de 1925, por sua vez, teve os direitos expirados e agora é de domínio público, e cada um distribui e coloca a trilha do jeito que bem entender. Ou seja, quem quiser lançar o filme com trilha do Cauby Peixoto ou do Wando só precisa de cara-de-pau e da autorização dos compositores.

Em Busca do Ouro, como muitos outros, traz Charles Chaplin no papel do Vagabundo, ou Carlitos, como ficou conhecido por aqui O cenário é o Alasca durante a Corrida do Ouro, e nosso herói está perdido e esfomeado. (Qualquer semelhança com Na Natureza Selvagem é mera coincidência, porque este último é baseado numa história real.) Logo no início, o solitário explorador encontra uma cabana, conhece uma galerinha irada e apronta altas confusões tentando não morrer de inanição.

A genialidade e o perfeccionismo chaplinianos são responsáveis por momentos antológicos ao longo do longa. A cena de Carlitos e Big Jim degustando uma bota no jantar, com direito a cadarço enrolado no garfo como se fosse macarrão, precisou de 63 takes e três dias pra ser feita. A bota era feita de alcaçuz (tá achando que o cara vai comer couro 63 vezes?), e, claro, Chaplin foi parar no hospital por excesso de açúcar no sangue. Outra cena clássica, a da dança dos pãezinhos, fez tanto sucesso na época que em algumas exibições eles paravam a projeção no meio e reprisavam o trecho a pedido da platéia, como aconteceu na estréia do filme em Berlim.

Conselho final: quando for assistir, não faça como eu e arranje uma cópia decente. Ou então desligue o som e ponha no fone de ouvido o artista de sua preferência. O último que tentou fazer isso juntou Pink Floyd com o Mágico de Oz. Vai que dá certo com o Wando?

Também publicado no Cinema de Buteco.

25/08/2008

Arquivo pessoal



Devido ao meu hábito de juntar tralha, de vez em quando acho umas pérolas perdidas aqui em casa. Como esse desenho dos Changeman (ou "Man Change") que fiz em 1989, todos devidamente identificados por seus nomes, ou quase isso. Por algum estranho alinhamento cósmico, ou falta de noção mesmo, o quinteto Dragon, Mermaid, Phoenix, Griphon e Pegasus recebeu as alcunhas de Dragreo, Marmet, Fenkis, Gripo e Pegzus. Mas acho que pra 4 anos de idade eu passei até perto. Já não posso dizer o mesmo dos desenhos, e o pior é que meu traço não evoluiu muito desde então.

24/08/2008

22/08/2008

Queria ou não queira



Boa pedida essa nova coleção da Folha. Seguindo o esquema jazzístico lançado ano passado, que trazia 20 livros-cds com a história dos artistas, curiosidades, disquinho lembrando um vinil e preço camarada, a nova coleção vem apresentar, nos mesmos moldes, os crássicos da Bossa Nova.

Ok, vamos ser sinceros: se o jazz tem numerosas vertentes, incontáveis expoentes e décadas de produção ativa, fazendo de cada livro-disco uma porta para novos sons e possibilidades, a Bossa Nova é coisa de três caras (Tom, Vinicius e João Gilberto) e um punhado limitado de canções (ainda que muitas obras-primas) repetidas à exaustão por zilhares de intérpretes (mesmo que muitas versões superem as originais). A nova coleção, obviamente, aproveita a onda dos 50 anos da Bossa Nova - e é bom que aproveite logo, que essa onda já tá passando. Mas a coisa é bem-vinda. Vinte discos conseguem ser um apanhado bem completo do estilo, o texto do Ruy Castro é informativo e descontraído, bom pra ler deitado na rede, e a relação custo-benefício é uma lição pra muita gravadora sem-vergonha por aí.

Tom e Vinicius, não por acaso, já batizam os volumes 1 e 3, cantando as próprias músicas. O volume 2 é dedicado ao Dick Farney, cuja empostação de voz à la Nélson Gonçalves não me convenceu. Voz de Bossa Nova tem que ser miúda e precisa, quase inaudível, como a de João Gilberto. Aliás o João, estranhamente, não dá as caras em nenhum dos vinte volumes. Será que não aprovou a qualidade do som? Não importa, ainda temos Baden, Nara e Marcos Valle pela frente e a expectativa para a coleção do ano que vem: a Folha seguirá a linha das comemorações e investirá nos 30 anos da Lambada?

19/08/2008

The Dark Letter

Uma vez eu recebi uma carta do Batman. Eu tinha cinco anos e era fã do cara. Colecionava as revistas, assistia às suas aparições televisivas e reencenava diariamente, com os bonequinhos da coleção dos Superamigos, a cena em que ele joga o Coringa no ácido. Era perfeitamente plausível, portanto, que eu pudesse receber uma carta do sujeito. O manuscrito começava com um convite: "Quando você vier a Gotham Cyty (sic) venha me ver na minha caverna. Gosto muito dos meninos bonzinhos que estudam e que sejam educados". Hoje em dia é fácil enxergar conotações pedófilas no convite, mas deixe um pouco a malícia de lado, vá. O Batman da carta era mais fascista que pedófilo: "Você é um menino obediente e por isto eu gosto de você", dizia mais adiante.

Cheguei a redigir a resposta mas nunca a enviei ao subsolo da Mansão Wayne. Uma pena. Dizia: "BATMAN EU JÁ RECEBI A CARTA MUITO OBRIGADO TIAU A QUI NO BRASIL TEM MUINTOS ANIMAIS COELHO TIGRE PAVÃO É TEM MUINTOS E TAMBÉM EU TENHO O BONECO IGUAU A VOCÊ. UM ABASO. LUCAS"

Quando tive idade suficiente para perceber que o Batman não me mandaria carta em português, suspeitei que fosse obra do meu tio, que na época morava em Nova York e tinha me presenteado com o tal "boneco iguau a você". Nada: a autora era minha avó, que nunca foi aos Estados Unidos e estava só tirando onda com minha cara. O que não tira a graça da coisa, claro. Quantos netos podem se orgulhar de ter uma avó que também é o Batman?



Identidade corporativa é isso: o Batman escreve em papel timbrado.



O envelope, de maio de 1990, com os selos norte-americanos.



A caixa de correspondências da Mansão Wayne ficou sem receber minha resposta.

18/08/2008

Ouro de tolo



Minha banda tem uma música chamada "Isso Tem Que Mudar", cuja letra é alterada cada vez que é tocada ao vivo. Entre as 17 letras escritas, já rolaram estrofes sobre gripes, índios, reveillón, horário político. A versão Olimpíadas foi composta e cantada em agosto de 2004, quando o Brasil se estrepava em Atenas. Diziam os versos:

O país do futebol não tem nem time competindo
De mal a pior, a equipe de ginástica tá indo
Medalha de ouro, a China já tem mais de onze
Mas até agora a gente só conseguiu bronze

Enquanto Michael Phelps batendo recordes e ultrapassando Itália e França, sozinho, no quadro de medalhas, amargamos uma trigésima-sexta posição que seria ainda pior se não fosse o Cielo Filho. Se a Copa é a Pátria de chuteiras, a Olimpíada é quando a Pátria cai de bunda.

05/08/2008

A Velha Debaixo da Cama - Capítulo VII - O Pacto



Lá vamos nós de novo ao tradicional texto do concurso literário da revista piauí. O vencedor do capítulo VII foi o maranhense Franco Neviani, cujo texto está aqui. Já o meu foi este aí:

A VELHA DEBAIXO DA CAMA Capítulo VII - O Pacto

Eles até que tentam. Na volta pra casa, ela comenta do frio e ele repete o comentário; ela reclama da repetição e ele repete a reclamação. O infantil jogo de nervos segue por alguns minutos e acaba onde começa o tédio.

Depois é a vez dela. Pede que ele faça o jantar. Desdenha o ensopado e exige mais tempero. Queixa-se do excesso, devolve, quer que ele prepare com mais paciência. Por fim ela se cansa, é inevitável. E não trocam uma palavra pelo resto da noite.

É desnecessário verbalizar o óbvio: ao deixar de ser segredo, a competição de sadismo mútuo perdera o propósito, perdera a graça. Ora, se Mergulhão não é fantasma que perambula por aí vigiando a ex-esposa, não há sequer desculpa para dormir debaixo da cama. Pois é sobre ela, pela primeira vez, que Antônio e Maria repousam o corpo após o dia agitado. Não que o sofrimento tenha se extinguido por completo. O bafo fúnebre de Maria continua o mesmo, e Antônio ainda não é sombra do que fora Mergulhão em sua saudosa juventude. Mas isso não os impedia de pegar no sono antes, e não é isso o que atrapalha agora. São aqueles pensamentos que pairam no ar como uma nuvem chata e teimam em não sumir, esperando só que alguém tenha coragem de encaixá-los numa frase.

É Maria de Maria quem enfim quebra o silêncio:

- Dez milhões é muito dinheiro, né?
- É. Muito dinheiro – ele confirma, enquanto franze a sobrancelha.

Ela estende a pausa mais do que devia e prossegue:

- Mas cinco milhões ainda é uma quantia considerável.

Ele espera passar o calafrio pra falar:

- É, é uma boa quantia.

O diálogo pára por aí, mas o sono não chega até o sol aparecer.

Nos dias seguintes, Antônio e Maria de Maria vêem sua rotina transformada. Ela não o chama mais para as caminhadas matinais por entre as garbosas romãzeiras – às vezes, nem ela comparece aos próprios passeios, deslumbrada com a maciez do colchão que por anos só lhe serviu de teto. Mal conversam entre si, trombam-se pouco ou quase nada e não se atrevem a tocar numa vírgula do assunto. Quando chega a terceira noite, no meio do jantar, o clima torna-se tão insustentável que basta um olhar mais demorado para que tomem a decisão. E ninguém diz alto que o coronel é velho e fraco, odeia ambos e tem muito dinheiro guardado num cofre no porão de sua casa, cujo acesso secreto por uma tábua solta no armário Antônio já até conhece, e que é ridículo atazanar e ser atazanado diariamente até que surja um vencedor, quando é menos utópico e vagaroso buscar na fonte o que é direito legítimo de filho e viúva, ainda que viúva de fachada, ainda que filho bastardo.

Dizem apenas:

- Ok, como vamos fazer isso?

Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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