A Velha Debaixo da Cama - Capítulo VII - O Pacto
Lá vamos nós de novo ao tradicional texto do concurso literário da revista piauí. O vencedor do capítulo VII foi o maranhense Franco Neviani, cujo texto está aqui. Já o meu foi este aí:
A VELHA DEBAIXO DA CAMA Capítulo VII - O Pacto
Eles até que tentam. Na volta pra casa, ela comenta do frio e ele repete o comentário; ela reclama da repetição e ele repete a reclamação. O infantil jogo de nervos segue por alguns minutos e acaba onde começa o tédio.
Depois é a vez dela. Pede que ele faça o jantar. Desdenha o ensopado e exige mais tempero. Queixa-se do excesso, devolve, quer que ele prepare com mais paciência. Por fim ela se cansa, é inevitável. E não trocam uma palavra pelo resto da noite.
É desnecessário verbalizar o óbvio: ao deixar de ser segredo, a competição de sadismo mútuo perdera o propósito, perdera a graça. Ora, se Mergulhão não é fantasma que perambula por aí vigiando a ex-esposa, não há sequer desculpa para dormir debaixo da cama. Pois é sobre ela, pela primeira vez, que Antônio e Maria repousam o corpo após o dia agitado. Não que o sofrimento tenha se extinguido por completo. O bafo fúnebre de Maria continua o mesmo, e Antônio ainda não é sombra do que fora Mergulhão em sua saudosa juventude. Mas isso não os impedia de pegar no sono antes, e não é isso o que atrapalha agora. São aqueles pensamentos que pairam no ar como uma nuvem chata e teimam em não sumir, esperando só que alguém tenha coragem de encaixá-los numa frase.
É Maria de Maria quem enfim quebra o silêncio:
- Dez milhões é muito dinheiro, né?
- É. Muito dinheiro – ele confirma, enquanto franze a sobrancelha.
Ela estende a pausa mais do que devia e prossegue:
- Mas cinco milhões ainda é uma quantia considerável.
Ele espera passar o calafrio pra falar:
- É, é uma boa quantia.
O diálogo pára por aí, mas o sono não chega até o sol aparecer.
Nos dias seguintes, Antônio e Maria de Maria vêem sua rotina transformada. Ela não o chama mais para as caminhadas matinais por entre as garbosas romãzeiras – às vezes, nem ela comparece aos próprios passeios, deslumbrada com a maciez do colchão que por anos só lhe serviu de teto. Mal conversam entre si, trombam-se pouco ou quase nada e não se atrevem a tocar numa vírgula do assunto. Quando chega a terceira noite, no meio do jantar, o clima torna-se tão insustentável que basta um olhar mais demorado para que tomem a decisão. E ninguém diz alto que o coronel é velho e fraco, odeia ambos e tem muito dinheiro guardado num cofre no porão de sua casa, cujo acesso secreto por uma tábua solta no armário Antônio já até conhece, e que é ridículo atazanar e ser atazanado diariamente até que surja um vencedor, quando é menos utópico e vagaroso buscar na fonte o que é direito legítimo de filho e viúva, ainda que viúva de fachada, ainda que filho bastardo.
Dizem apenas:
- Ok, como vamos fazer isso?
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