08/05/2009

Maria Antonieta entre dois séculos



Maria Antonieta
(Marie Antoinette, 2006, de Sofia Coppola)

Texto produzido para a aula de Introdução à Crítica, da Escola Livre de Cinema.

O rei da França joga cartas, as damas da corte discutem a vida alheia e a rainha Maria Antonieta, amuada em meio à corte e sonhando com o amante, pede licença para deixar a sala. Enquanto percorre os corredores do palácio rumo ao seu quarto, a música que a acompanha não é um tema triste de piano ou um vigoroso concerto de cordas típicos do século 18, mas um rock dos anos 2000, tocado com instrumentos que nem tinham sido inventados ainda, e uma letra que manifesta: “Eu quero ser esquecido / Eu não quero ser lembrado”.

A trilha anacrônica não é mero capricho de Sofia Coppola. Uma obra geralmente tem a cara da época em que foi produzida, e a diretora eleva isso a um outro nível. Sua Maria Antonieta, forçada a se casar aos 14 anos com um garoto que não conhecia e feita rainha sem que soubesse muito bem pra quê, é uma personagem deslocada. Não está apenas fora de lugar, como os protagonistas de Encontros e Desencontros, filme anterior de Coppola, mas principalmente fora de seu tempo. A menina nada tem de visionária ou revolucionária: é que simplesmente, em essência, poderia ser uma nova-iorquina rica mantendo um casamento de aparências com outro jovem, ou mesmo uma brasileira de classe média-alta que faz uma faculdade que não lhe interessa e curte a noite em boates de shopping center. A diferença, e é o que provocou tanta polêmica, é que aqui a retratada é uma célebre personalidade histórica.

A obra de Sofia Coppola, no entanto, não quer o compromisso com uma suposta fidelidade a fatos. O filme pertence a Maria Antonieta: sua visão do mundo, seus problemas pessoais. Não é à toa que o primeiro ato investe em muitos planos subjetivos, compartilhando com a protagonista sua descoberta das pessoas, costumes e minúcias do Palácio de Versailles. Até a introdução de personagens ao espectador é feita com esse intuito: o delfim Luís Augusto é enquadrado bem de longe ao aparecer pela primeira vez, e só quando sua futura esposa Maria Antonieta é apresentada a ele, alguns minutos depois, é que seu rosto é mostrado para nós. Da mesma forma, o importante cenário político da França do século 18 só é abordado no final do filme, quando a revolução já bate à porta e a rainha não pode mais ignorá-la.

É claro: Sofia Coppola sabe evitar o exagero e mescla com equilíbrio os elementos cronologicamente conflitantes. Na cena do baile a fantasias, por exemplo, é suave a transição entre a música clássica e a moderna. A trilha nunca é verdadeiramente diegética, não há bandas de rock ensaiando na garagem do Palácio ou fazendo jam sessions com os músicos da corte.

No entanto, há duas concessões. A primeira é a opção pela língua inglesa em detrimento do idioma original, o que geralmente me incomoda – vide o recente Operação Valquíria e seu Hitler falando em inglês com seus compatriotas – mas que aqui cai bem. A segunda é a breve aparição de um All Star na cena em que Maria Antonieta experimenta seus sapatos, ingenuamente tratada como erro por alguns espectadores. Não é um erro e nem é pra ser levado tão a sério: é uma piada rápida e sagaz, como se ela tivesse cogitado usar o tênis mas intuisse que ainda era cedo demais. De resto, a direção de arte é suntuosa como se esperaria, figurinos e cenários foram reproduzidos com precisão e o filme inclusive foi rodado no próprio Palácio de Versailles, que hoje em dia virou museu, o que contribui ainda mais para a sensação de anacronismo: a Maria Antonieta de Kirsten Dunst é quase a visitante de um museu vivo.

Maria Antonieta guarda muitas semelhanças com Encontros e Desencontros. O tema da distância – geográfica, temporal ou emocional – é central em ambos os filmes. Os personagens de Bill Murray, Scarlett Johansson e Kirsten Dunst compartilham da mesma aversão a solenidades despropositadas, da mesma falta de diálogo com seus cônjuges e do mesmo cotidiano morto, tentando aproveitar como podem uma vida vazia. Diferente de Encontros e Desencontros, porém, a trama de Maria Antonieta não se desenrola em poucos dias, mas em um período de duas décadas. O filme não perde unidade com isso, porque o foco continua nas impressões de sua protagonista, e nem é necessário que nos esforcemos para preencher lacunas de informações.

É interessante, aliás, notar como pouco envelheceram os personagens mesmo após tanto tempo, especialmente Maria Antonieta e Luís XVI. Certamente não foi descuido da equipe de maquiagem deixá-los quase adolescentes mesmo depois dos trinta. Tanto o rei quanto a rainha parecem não compreender exatamente o panorama político em que estão inseridos e quão graves são as conseqüências de suas decisões tomadas de forma descuidada, juvenil. Maria Antonieta, como figura histórica, sempre carregou o fardo de ser uma governante que não se importava com seus governados. O filme de Sofia Coppola tenta mudar essa imagem? Em partes. Ao mesmo tempo em que a rainha declara nunca ter dito a desdenhosa frase “que comam bolo”, quando os franceses reclamavam a falta de pão, ela continua mais preocupada com a unha que com a fome dos súditos, e nem entende porque as pessoas não a acompanham mais quando ela puxa aplausos ao assistir uma ópera. No fundo, ela continua a menina marota que escapa do palácio para ir a festas disfarçada. Como na música dos Strokes, ela não quer ser lembrada, não quer ser o centro das atenções. Já que não tem escolha, ela faz o que pode.

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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