01/02/2005

Calouro burro!



Hoje, pelo quarto semestre consecutivo, participei, na faculdade onde estudo, desta sangrenta iniciação universitária vulgarmente conhecida como "trote". Sangrenta é exagero. O trote da Uni é até muito tranqüilo se compararmos com o que sai nos jornais a respeito deste rito de iniciação, e não inclui afogamentos, torturas do tempo da Inquisição ou membros decepados ao estilo de Kill Bill. É nojento, apenas. Comecei a participar desta balbúrdia festiva quando comecei o segundo período. Meros seis meses depois de levar a minha cota de farinha na cabeça e tinta na cara, já podia ser considerado um "veterano", vejam só. Foi nesse dia que criei minha marca registrada, a qual mantenho até hoje: sou o cara que passa tinta dentro do ouvido dos calouros. Dá um trabalhão pra lavar depois.

Esses quatro trotes (até agora) desferidos contra as pobres almas que acabam de entrar na faculdade, felizes da vida, fizeram com que eu percebesse um padrão para o primeiro dia de aula de cada semestre, que geralmente é assim:

1) Ao chegar à faculdade, dirijo-me à sala onde passarei as manhãs do semestre e encontro os colegas de sempre após um mês e meio sem ver a cara de muitos deles. Entra o professor na sala e dá uma aula curta, afinal de contas é o primeiro dia de aula. Às vezes assisto, às vezes não. No terceiro período, por exemplo, perdi a professora de Psicologia dizendo que ia trucidar-nos vivos durante o semestre.

2) Saio da sala e vou para o quarto andar junto com os colegas. É lá que concentram-se todas as salas de primeiro período, uma do lado da outra, como um presente. É bem verdade que os colegas de sala andam diminuindo. Quando começamos o segundo período, a lembrança do nosso trote ainda estava fresca e a sala inteira compareceu, todos loucos por vingança. Hoje em dia a turma se resume a uns três ou quatro. Será que estão virando todos adultos?

3) Tem início o terrorismo. Hordas de veteranos, muitos deles pessoas que eu mesmo já sujei de tinta em algum dos períodos passados, começam a esmurrar a porta onde podemos ver, pela janelinha, os calouros morrendo de medo, enquanto a professora de Filosofia dá aula calmamente, como se não pudesse ouvir os gritos de "Vai morrer, vai morrer!!", "Você aí de vermelho, dá um sorriso pra gente!!" e "Ô fessora, solta os calouros logo!!". Terror psicológico é um barato.

4) Termina o horário e nessa hora já estão todos de prontidão no corredor. Quando a professora sai da sala, deixando indefesos seus alunos, entra a turma de veteranos que manda os calouros tirarem os sapatos e colocarem tudo num saco, misturando os chulés. Os veteranos vão soltando os calouros devagarinho, às vezes até perguntando o nome pra galera gritar lá fora, e quando estes saem já tomam aquela ducha de farinha, tinta, detergente, perfume e o que mais tiver no dia. Teve uma vez que uma menina levou aquele líquido roxo que dentista usa pra passar no dente. Café e brocal costumam aparecer de vez em quando. O chão fica escorregadio e se o pessoal não tomar cuidado, leva tombo de costas iguais aos dos bandidos de Esqueceram de Mim.

5) Depois da sujeira inicial, os calouros são encaminhados para o pátio, e normalmente vão sem oferecer resistência, pois como diz a máxima estudantil, todo calouro é burro. Lá, quem ainda tinha alguma parte do corpo (ou da roupa) limpa perde as esperanças de voltar apresentável pra casa. Calouras de cabelos longos são alvos preferenciais. Todos rolam no chão repleto de tinta e dão adeus às calças e camisas com que vieram no primeiro dia.

6) Os sapatos, enfim, são devolvidos, mediante uma módica quantia, que gira em torno dos três reais. É esse dinheiro que vai pagar nossa cerveja no boteco da Das Dores, que fica na rua da faculdade. Vão todos pra lá, calouros e veteranos. É a hora da confraternização final. Rodadas de pinga são tradicionais, mas ultimamente a calourada anda meio fraca pra bebidas mais fortes. Quando o dinheiro dos sapatos acaba, os calouros vão pedir dinheiro pros carros que passam na rua. Tem muito motorista gente boa e outro tanto que passa direto sem dó. A essa altura, o álcool já está fazendo efeito. Semestre passado teve um calouro tão bêbado que foi atropelado pelo próprio carro, depois que deixou um amigo, também bêbado, dirigi-lo. Tomou um tombaço e bateu a cabeça no asfalto, para no segundo seguinte ficar de pé e voltar aos malabarismos que fazia, tentando conseguir mais um trocado pra cerveja.

Haverá repeteco no semestre que vem. Recém-veteranos terão sua vingança maltratando os inocentes que nada tiveram a ver com sua desgraça de seis meses atrás. Veteranos mais veteranos, embora em menor número, marcarão presença. Enfim. É a vida. Eu estarei lá, sujando os ouvidos alheios.

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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