18/02/2005

Hipóteses



Os competentes advogados de defesa conseguiram. Arrumaram testemunhas tão famosas, pessoas tão conhecidas e amadas pelo grande público, que ficou difícil para o júri achar que estivessem mentindo sobre a reputação do tio Michael. Gente do porte de Quincy Jones, Elizabeth Taylor e Stevie Wonder, que jurou não ter visto nada. Dava até pena da promotoria, literalmente massacrada no aguardado desfecho do julgamento do século, embora, a bem da verdade, o século esteja ainda engatinhando.

Mas ninguém poderia prever... aquilo. Os jurados já estavam indo para a salinha onde decidiriam o veredito, convictos da inocência do músico, quando o promotor tirou não um ás, mas um baralho inteiro da manga. Disse ao juiz:

- Se me permite, Meritíssimo, gostaríamos de chamar mais uma testemunha.

Sim, pode chamar quem você quiser, diz o juiz, com sua peruca de cabelos brancos cacheados, visivelmente cansado depois daqueles meses todos de chateação. O promotor se levanta, decidido.

- Pois bem. A promotoria chama... Michael Jackson!

Abrem a porta e entra um negão boa-pinta, recebido por uma saraivada de flashes de câmeras, rodeado por exclamações dos jornalistas e espectadores ali presentes. Não guarda semelhança alguma com aquele senhor albino acuado no banco do réu, mas... pensando bem... se aquele menino peralta dos Jacksons Five não tivesse retalhado a cara em trocentas cirurgias plásticas... se não tivesse desbotado tanto...

Em poucos minutos, todas as televisões do mundo já estão mostrando o depoimento do sujeito. Um pouco abatido, mas ainda mantendo o bom-humor, ele conta tudo, depois de décadas escondido da sociedade, num calabouço escuro em Neverland. Conta como, pouco depois de lançar o multiplatinado álbum Thriller, tornou-se um astro de primeira grandeza ao apresentar ao mundo o moonwalk. Como, na mesma noite em que andou "dix costax" pela primeira vez em público, recebeu visitas de lendas da dança como Fred Astaire e Gene Kelly. Como, pouco depois de irem embora as ilustres presenças, foi abordado por um ser alienígena sem nariz, que lhe disse "Sua fama será minha" e tomou sua forma física sem nem perguntar se podia. Como passou os vários anos seguintes trancafiado no subsolo de sua própria casa, tendo como companhia apenas uma televisão, de onde acompanhou toda a trajetória do alien em seu lugar: a compra dos direitos autorais dos Beatles, a reunião de figurões em "We Are The World", o casamento e o divórcio com a filha do Rei, as esquisitices gradativamente substituindo a boa música.

Assistiu, horrorizado, às acusações de pedofilia, e só aí percebeu que tivera sua fama roubada para que o ET pudesse satisfazer seus sórdidos desejos, inviáveis caso aparecesse em sua forma original. Igualmente horrorizado, assistiu à lenta transformação do suposto Michael no terrível ser que era quando apareceu em sua casa naquela distante noite de 1983. Primeiro a pele, que perdeu a cor; depois o nariz, que foi afinando até cair, e então substituído por uma prótese mal-feita. Já tinha perdido as esperanças de voltar à sociedade quando foi enfim encontrado pelos policiais que revistavam Neverland, e trazido a público agora, como o grande trunfo da promotoria.

Não acreditam na história maluca do sujeito, infelizmente. Tão logo ele deixa o tribunal, sob vaias e protestos, é preso por falsidade ideológica. Apenas mais um querendo a fama fácil, analisam os jornalistas que transmitem ao vivo o momento da prisão.

No banco do réu, ninguém repara que o acusado, suando em bicas, tenta desesperadamente colar de novo o nariz no rosto, antes que as câmeras voltem a focalizá-lo.

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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