08/04/2005

Ensaio Sobre José Saramago



O leitor que desavisado abre a esmo um livro qualquer do lusitano José Saramago certamente há de se assustar com o amontoado de letrinhas, não uma em cima da outra, cabe a ressalva, e sim dispostas na ordem comum da escrita ocidental, mas ainda assim intimidantes de um modo ou de outro. É que Saramago parece ignorar, ao menos à primeira vista, sinais de pontuação tão usuais nos textos com que diariamente temos contato, tais como o chamativo ponto de exclamação, a indagativa interrogação, a eterna parceria dos dois pontos com o travessão, o pausático ponto e vírgula e por aí vai, a lista é longa e você que me lê através da tela de um computador poderá conferir os outros símbolos no próprio teclado à sua frente. Isso sem falar nos parágrafos que ocupam cinco ou seis páginas de cada vez, mal dando trégua para respirarmos no meio dos diálogos extasiantes ou das divagações acerca da psique de seus personagens. Da primeira vez que um livro dele caiu em minhas mãos, pensei com meus borbotões, Deus do céu, embora a bem da verdade devo ter exclamado coisa ligeiramente diferente, Puta merda, ou algo do tipo. Não me acovardei, no entanto. Pus-me a ler o volume que tinha em mãos e que ia se tornando cada vez mais instigante à medida que avançava, Ensaio Sobre a Cegueira era seu nome, e ainda hoje é um de meus livros prediletos. A trama parte de uma epidemia insólita, que surge do nada e contagia a todos pelo simples contato, e não se trata de ebola ou pneumonia asiática, mas de cegueira, vejam só. Os personagens não possuem nomes, sendo chamados apenas de o médico, o mulher do médico, a rapariga dos óculos escuros, o velho de tapa-olho. Fantástico. Já o segundo livro que li do mesmo autor, nos primeiros meses deste presente ano, esquece o aninomato e traz o nome do protagonista no próprio título, O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Como há de se imaginar, narra a já conhecida história de Jesus, Yeshua como se diz em hebraico, JC para os preguiçosos, desde o início do começo, no dia de sua concepção, até o conhecido fim mostrado em detalhes, fortes para algumas pessoas, por Mel Gibson, em sua aventura bíblica nos cinemas. Enquanto o Ensaio prende nossa atenção em tempo integral, o Evangelho revela-se cansativo em determinados pontos, talvez por focar durante mais de cem páginas não no Jesus em questão, mas em José seu pai, em quem Saramago, seu xará, deposita a culpa sobre a morte das criancinhas em Belém, a mando do rei Herodes. Os episódios mais conhecidos sobre o filho de Deus estão lá, em leves pinceladas nos capítulos finais, mas o melhor capítulo, sem dúvida, é aquele em que Jesus trava um caloroso debate com Deus e o Diabo. É possível até mesmo imaginar um elenco para essa cena na tela grande, Jim Caviziel, claro, como o Nazareno, Al Pacino fazendo as vezes do Diabo e Jim Carrey como Deus, não o Deus a quem rezamos todos os dias, o Papai do Céu das criancinhas, mas Seu substituto, pois nisso Carrey já tem experiência, haja visto em Todo-Poderoso, o filme. E se você chegou até o fim deste texto, marcado pelo característico excesso de vírgulas saramaguiano, sem seqüelas graves ou traumas mais profundos, vale a pena encarar um livro inteiro do escriba português. Não precisa comprar, peça emprestado, o importante é a leitura, não deixar mais milionário um ganhador do Nobel.

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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