01/02/2010

Depois do pré-primário

 

Logo no início do semestre letivo, no final de setembro, escrevi sobre meus primeiros dias aprendendo chinês na Beijing Language and Culture University (BLCU). Eu já tinha aprendido algumas poucas expressões indispensáveis – “amigão! uma cerveja!” – mas fora isso não era capaz de falar nada, ler coisa nenhuma, entender lhufas. Era impossível até digitar numa mensagem de celular que eu estudava na 北京语言大学 ou morava em 五道口. Ora bolas, eu sequer sabia escrever meu próprio nome! 

Claro que, quatro meses depois – o semestre letivo é na verdade um quadrimestre –, as coisas mudam um pouco. Quando você vê, está fazendo uma prova de 9 páginas totalmente em caracteres, com questões abertas e de múltipla escolha, texto pra ler, redação pra escrever. O processo é bem mais lento do que se você estivesse aprendendo um idioma “fácil” – francês, italiano, alemão, catalão... – e requer perseverança principalmente no que se refere a escrita e leitura, mas aos poucos o que era um bicho de sete cabeças vai ficando apenas com umas duas ou três. 

 
"Queridos papai e mamãe: envio essa carta com muito amor e carinho e a certeza de que, com apenas um semestre de intensos estudos, vocês serão capaz de entendê-la." 

Pra começar, o aprendizado do mandarim tem algumas vantagens em relação às línguas que a gente conhece. Sim, em muitos aspectos o idioma é bem simples. Começando pela pronúncia: depois que você entende o funcionamento dos quatro tons, que dão um ar meio musical às frases e podem ser um pé no saco para os iniciantes, não é difícil articular os sons do idioma. Mesmo porque eles se repetem bastante. Enquanto um “ra” em português é falado de maneiras diferentes em “rato” e “barato”, um shǔ é sempre um shǔ em mandarim. 

E a gramática. Ela pode ficar bem complicada com o passar das aulas, as regrinhas e os diversos usos da partícula 了 às vezes tiram o seu sono, mas pra se expressar em frases simples não é preciso saber uma infinidade de conjugações e terminações, como em nossa língua pátria. Fala-se “eu comer”, “você comer”, “nós comer”. No passado é “ontem eu comer”. No futuro, “amanhã eu comer”. Nada de futuros do subjuntivo ou pretéritos-mais-que-perfeitos ou “vós comêreis”. 

No nível A, que completei semana passada, a gente passa por três livros-textos inteiros, sem falar nos dois de kǒuyǔ (conversação) e um de tǐnglì (escuta). No livro 1, os diálogos vêm em três – caracteres, pīnyīn e tradução em inglês – e o vocabulário inclui palavras como “professor”, “comida”, “fome”, “banheiro”. No livro 2, as traduções vão embora e a gente aprende “bicicleta”, “tosse”, “fotografia”, “melancia”. No fim do livro 3, acabou a mamata: só tem caracteres, sem nenhuma transcrição fonética, e o vocabulário traz coisas como “abundante”, “desperdício”, “bodas de ouro”, “não obstante”. 

Os diálogos também adquirem complexidade. No primeiro livro era tipo: 

Bai Hua: Você está ocupado? 
Fang Long: Sim, estou muito ocupado. E você? 
Bai Hua: Não muito ocupada. 

Já no terceiro... 

Aimi: Professor Wang, quero trocar um pouco de dinheiro, mas não sei qual é o melhor lugar para fazer isso, tenho dúvidas.
Prof. Wang: Conte-me. 
Aimi: Se eu for ao banco para trocar o dinheiro, a taxa de câmbio é muito baixa. Se procurar um lugar particular, tenho medo de ser enganada. 

Como qualquer campo de estudo, especialmente o de idiomas, é indispensável sair do ambiente escolar, tomar a pílula vermelha e vivenciar o mundo exterior. Mesmo porque, pelos livros, eles acham que a gente vive pra ir na escola. A palavra para quadro-negro (hēibǎn) está lá na segunda lição do livro 2. Mas só depois é que aprendemos a pedir um par de kuàizi (os famosos palitinhos) ou chamar o garçom (“fúwùyuán!”, de preferência gritado, e se quiser parecer pequinês de raiz é só adicionar um R puxado, como no sul de Minas, no fim da palavra). 

Morando na China é fácil: qualquer transeunte, policial ou mendigo é um language partner em potencial. Qualquer placa, cardápio ou anúncio é uma chance de treinar a leitura. O campus também é um ambiente extremamente propício e é fácil encontrar chineses dispostos a te dar umas dicas em troca de algumas conversas em inglês. Professores particulares são bem baratos – em geral, alunos do curso de chinês para estrangeiros que cobram entre R$ 8 e R$ 14 por hora. E as livrarias estão cheias de alternativas para quem quer fugir dos diálogos enfadonhos – fala sério, taxa de câmbio?! – do livro-texto. 

Duas opções que me ajudam um bocado: 

“ Mandarin Phrasebook ”, da mesma galera por trás da revista The Beijinger e que também faz o excelente “Insider’s Guide to Beijing”. Você já percebe que o foco é o mundo real quando, na orelha do livro, já encontra uma série de expressões pra facilitar na hora de pegar um táxi. Tem gírias, modelos de currículo e até frases para se livrar do vendedor de traquitanas na Grande Muralha (“Sou alérgico a cartões-postais”, ou “Eu perdi minha carteira e minha paciência”). Também é muito útil na hora de dar respostas engraçadinhas na sala de aula, como quando a professora perguntou qual meio de transporte usávamos para vir à escola e não podíamos repetir as respostas. Começou com: 

- Venho de carro. 
- Venho de metrô. 
- Venho de bicicleta. 
- Venho a pé. 

Depois descambou para: 

- Venho de barco. 
- Venho a cavalo. 
- Venho de disco-voador. 

O outro é o “ Radicais Chineses Mais Comuns ”, que esmiúça os bastidores dos caracteres chineses retalhando-os em pedacinhos e explicando o porquê de cada coisa. Torna a tarefa de decorar milhares de símbolos aparentemente desconexos muito mais rápida e lógica. 

Por exemplo: juntando os radicais 女, que representa mulher, e 彐, de vassoura, temos 妇, uma mulher segurando uma vassoura, que significa mulher casada (feministas, favor reclamar com os dicionários). 

Ou 尸 (corpo), mais 水 (água), resulta em 尿, que é uma água sob um corpo e representa a prosaica ação de fazer xixi. 

Aí você pergunta: quatro meses imerso em aulas, exercícios, provas, conversas, andanças, language partners, professores particulares, radicais, dicionários, flashcards (as famigeradas fichinhas com o caractere de um lado e a pronúncia e o significado do outro), dá pra aprender o bastante? 

Depende do que você considera o bastante. Ainda restam milhares (milhares!!) de caracteres pra decorar. Muito vocabulário, muita conversa, muita prática. E em qualquer língua, nunca se aprende o suficiente. 

Mas dá pra: 

• Se virar num restaurante – chamar o garçom, pedir o cardápio e a conta, perguntar se determinado prato é pra dois e quanto custa a carne de cachorro; 
• Explicar pro taxista onde você mora e, se você também tiver um bom senso de direção, como faz pra chegar lá; 
• Entender o básico de um cardápio – se um certo prato tem carne de quê, se tem ovo, se é macarrão; 
• Pechinchar nos infinitos mercados e lojinhas que tem por aí; 
• Escrever redações de 100 ou mais caracteres, abordando temas como “uma carta para meus pais”, “minha vida em Beijing”, “o clima do meu país”, “uma doença que eu tive”; 
• Cantar “Parabéns pra você” em chinês (“Zhu ni shengri kuaile, zhu ni shengri kuaile...”); 
• Entender o sentido de uma historinha em quadrinhos, digamos, do Pateta ou dos Smurfs; 
• Escrever e-mails e mensagens de texto em caracteres, usando sistemas como o Microsoft Pinyin 
• Contar de zero a um zilhão e ainda fazer os gestos correspondentes com a mão de um a dez – pois é, os chineses usam um sistema diferente que só precisa de uma mão, olha só: 

 

Ah, e quanto a escrever meu nome, foi a primeira coisa decisão que eu tomei quando terminei de escrever aquele texto. Peguei minha caderneta de estudante, pratiquei bem os caracteres de “Lúkǎsī” (卢卡斯), perseverei e agora não só assino meu nome em chinês a torto e a direito, como até mandei fazer um carimbo. Quer aprender a escrever o seu? Vai lá no A-China que eles têm uma lista de Abílio a Zeferino.

 

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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