28/05/2010

Camelando no deserto

 
 

Dia 3 – Segunda-feira, 3 de maio de 2010 

06:30 
Já estou de pé, ávido por mais um dia de incríveis aventuras e altas confusões. Na verdade, foi porque o guia avisou que sairíamos às 7 em ponto para tomar café fora do hotel, e o trouxa aqui acreditou. 

07:51 
Depois de uma hora aguardando, finalmente todos se encontram no saguão – os italianos, os coreanos e o guia, morto de sono – e podemos tomar nossa refeição matinal. Entramos no ônibus e o motô dirige por três ou quatro minutos até o destino final. Tanta espera para chegar a uma lanchonete aonde poderíamos ter ido a pé. 

O café da manhã é bonzinho e inclui biscoitos salgados que lembram churros e os onipresentes ovos cozidos. Mas o destaque vai para o móbile natalino, repleto de Papais Noéis, pendendo do teto. Estamos em maio, cambada! 

 
"Então não é Natal..." 

08:34 
Deixamos Baotou pra trás. Deserto, aí vamos nós. 

09:40 
O deserto de Kubuqi é o sétimo maior da China (são quantos, afinal?) e, como cabe a um bom deserto, é grande à beça. E assim como delimitaram pedaços das estepes mongóis, deram nome e abriram para visitação, aqui fecharam um trecho e batizaram com o dramático nome de Desfiladeiro da Areia Ressonante. São 400 metros de largura e dunas que chegam a uma altura de 110 metros. A referência à "areia ressonante" vem porque, segundo a lenda, se você descer as dunas escorregando e com as mãos na areia, consegue ouvir o som dela "cantando". 

 
Propaganda de água no deserto: é só mostrar o produto que já virou sucesso de vendas. 

Quando chegamos, no entanto, não vemos nada disso. Só a areia ao longe, de perder de vista. Descemos no estacionamento e precisamos escolher: ou subimos as tais dunas a pé até chegar ao topo, ou compramos o bilhete para o teleférico. Somos todos um bando de preguiçosos e escolhemos o teleférico. 

 
Quer subir a pé? Vai que eu tô te vendo. 

09:55 
Exploração não tem limites: o ônibus para chegar ao teleférico custa 5 yuans e percorre no máximo, no máximo, quinhentos metros. Só pra comparar, em Beijing você consegue cruzar a cidade de busão pagando 1 ou 2 yuans. O teleférico, apesar de caro, cumpre seu propósito de te (e)levar às dunas altas do Desfiladeiro enquanto proporciona a sensação de poder despencar a qualquer momento. 

 
"Um dois três ..." 


 
Cadeiras flutuando sobre o deserto. 

 
"Ô Wang! Me liga daqui a cinco minutos, que eu tô voando!" 

 Sai de baixo, fia!! 

10:05 
Você já andou de tênis naquela areinha fina de Cabo Frio? No deserto não é muito diferente: a primeira pisada já enche sua meia de areia, que entra nos cantos das unhas e nas dobras dos artelhos. Quando você sai do teleférico, convenientemente te oferecem o aluguel de pantufas coloridas gigantes, que na verdade são pedaços de pano que você amarra nos pés. Claro que você tem a opção de andar descalço, mas quem resiste a pantufas coloridas gigantes? 

 
Mãe e filho bunitos na foto. 

 
Pode não parecer, mas essa escada de madeira e corda são uma mão na roda e tanto na hora de andar no deserto. 

10:15 
É chegada a hora do camelo. O passeio dura meia hora e os ungulados artiodáctilos se revelam surpreendentemente mais confortáveis que os cavalos, talvez pela velocidade reduzida (eles são puxados por guias que vão a pé), talvez pelo assento natural formado pelo vale entre as duas corcovas.

 
 
 
 
 

12:30 
Depois de um tempo andando pelo deserto a esmo, pegamos o teleférico de volta para o estacionamento e fazemos nossa última refeição em terras mongóis. O buffet é self-service (coisa rara aqui na China), mas o menu não traz inovações em relação às refeições anteriores. Carne de bode: não foi dessa vez. 

 
E os únicos cactos que eu vi no deserto foram essa dupla o-gordo-e-o-magro incrivelmente falsa, enfeitando a fachada deste hotel. 

13:30 
Entramos no ônibus. Segundo o guia, serão 6 horas até Beijing, "mas é possível que seja um pouco mais, já que é fim de feriado e pode haver engarrafamentos". 

19:37 
Começa a chover, o ônibus vai reduzindo a velocidade gradualmente até que pára. A estimativa do guia mostrou-se uma bela furada. Já se passaram 6 horas e estamos a nada menos que 200 quilômetros de distância de Beijing. A imensa fila de caminhões à frente não transmite muita esperança. 

20:13 
Estamos completamente parados há quase meia hora. O sol já se pôs e caminhões enormes tomam conta da pista até onde a vista alcança. Até vendedores ambulantes aparecem, vendendo arroz e macarrão no meio da estrada. 

 
Camelô que é camelô não perde nenhuma oportunidade, já diria Sílvio Santos. 

Finalmente, o trânsito começa a andar, mas agora temos que esperar um casal de coreanos que correu até o posto de gasolina mais próximo para usar o banheiro ou dar uma rapidinha, não se sabe ao certo. 

20:20 
Os coreanos apareceram, mas o diabo do trânsito parou de novo. Parece que agora é pra valer. Motoristas desligam motores, faróis e esperam. Sem entender o motivo de um tráfego tão intenso que imobiliza quilômetros de veículos, nós esperamos também. 

22:30 
Tomo um Dramin pra ver se consigo dormir nesse ônibus desconfortável. As horas seguintes são de um sono picado, com o pescoço doendo de tanto sentar, sem nenhum sinal de movimento e uma certeza crescente de que vamos ficar ali pra sempre. 

No próximo post: saiba quanto tempo durou a viagem de volta e veja uma porção de fotos que não entraram nos posts anteriores! 

23/05/2010

Wild horses... not!



Uma viagem à Mongólia Interior 
Dia 2 – Domingo, 2 de maio de 2010 

05:00 AM 
Toca o alarme. O guia tinha nos falado ontem: "acordem cedo para poderem admirar o nascer-do-sol". Esse cedo era coisa de 5 da madruga, já que a primavera tá no auge. Quando vemos a luz passando pela cortina e percebemos que a noite já é passado há muito tempo, tomamos a sábia decisão de voltar a dormir, mas não sem aquele peso na consciência: e se tivermos perdido o mais magnífico nascer-do-sol da história da Mongólia Interior?

Mas tudo bem. Mais tarde, um coreano da nossa excursão falou comigo que levantou pra ver o tal nascer-do-sol e achou muito do fuleiro.

06:38 
Hora de levantar e aproveitar as facilidades de se ter um banheiro dentro do yurt. Eu já imaginava que não teríamos chuveiro quente, mas não sabia que mesmo a água que saía pela torneira da pia seria tetricamente gélida desse jeito.

 
A versão mongol da vila d'Os Outros. 

 

O yurt de 6 pessoas: colchão no nível do chão e lençóis cor-de-rosa para todos. 

Saímos do yurt e damos uma volta ao redor do nosso acampamento. Do lado de cá, uma porção de ovelhas balindo. Acolá, vaquinhas pastando sem pressa, e uma quantidade de cavalos estacionados no haras que não supriria a demanda de dezenas de viajantes sedentos por um passeio hípico. De repente, na vastidão das estepes, observa-se um grupo de cinco cavalos vindo dali, outros oito trotando de lá, trazidos por pessoas a cavalo, de moto ou mesmo a pé. A maioria nem precisa ser guiada, já sabe o caminho de cor. 

 
Everybody say "méééé"! 

 

Comedouro compulsório: tem mãe que adoraria usar essa tática pro filho não largar a comida. 

07:00 
O café da manhã, no yurt-restaurante, não tem misto quente, café com leite e biscoitinhos recheados. É tudo estilo chinês: umas gororobas esquisitas, todas salgadas, muito chá e muita sopa. O pãozinho e o ovo cozido salvam minha refeição. 

08:50 
Estou em cima de um cavalo mongol, pronto para uma cavalgada de 2 horas pelas grasslands. Não estava muito afim de ir. O passeio teoricamente era opcional, e não incluso no pacote da viagem. Mas o guia encheu tanto o saco, falou que se a gente não fosse não tinha como manter o pacote tão barato, e blá e mais bláblá, que acabamos cedendo. Os italianos do nosso ônibus já tinham ido na frente. Fomos no segundo grupo, junto com os coreanos. Muitos são cavaleiros de primeira viagem. Os eqüinos se movem de forma lenta e sossegada, nada do que eu esperaria dos descendentes dos cavalos que transportavam os exércitos de Gêngis Khan. 

 
A tropa pronta para a aventura. 

09:37 
Paramos para tomar um cafezinho em uma casa mongol. Cafezinho é força de expressão: a bebida servida foi um "milk tea", ou chá de leite (chá lácteo?), com biscotinhos locais. Há que se dizer: bem melhor que o nosso café da manhã. 

 
Você sabe que está na Mongólia quando todos aqueles retratos do Mao Tsé-Tung foram trocados pelo Gêngis Khan. 

 

"Prova, meu filho, fiz com tanto carinho..." 

 

Cavalgávamos quando vimos, ao longe, essa construção misteriosa. Seria um yurt? Uma base inimiga? Um acampamento secreto? 

 

Não: apenas mais um monte de tijolo e trapos. 

10:54 
Estamos de volta ao acampamento. Os cavalos se comportaram de forma mais tranqüila que o Pacato do He-Man, exceto pelo arroubo de empolgação já no finalzinho, quando eles avistaram o haras e notaram que estavam chegando em casa. Conversando com os italianos, descobrimos que o grupo deles não teve a mesma sorte: no passeio deles quatro garotas caíram do cavalo, e não foi força de expressão. 

12:08 
Mais cantoria na hora do almoço. Não se pode comer sem ter uma mongol esgoelando canções típicas na nossa orelha? Mais bizarro que isso, no meio da refeição trazem um bode assado, inteiro, dentes à mostra num sorriso post-mortem e um distinto cachecol azul amarrado no pescoço. Espectadores se reúnem em volta e uma das cantoras mongóis preside o ritual: o casal chega, o cara corta um pedaço e oferece à namorada, a moçoila faz o mesmo, e por fim bebem um gole da bebida mongol que nos deram quando chegamos. Perguntamos ao nosso guia se podemos participar também e ele diz que não faz parte do nosso pacote: só o bode assado custa 1500 yuans, o equivalente a módicos R$ 390,00. 

 
"Aê, aê, aê, aê, ê, ê, ê, ê, ô ôô ôô ôô ôô..." 

13:29 
Pança cheia, corpos descansados e mochilas dentro do ônibus prontas para mais uma jornada. Ainda temos uma última atividade nas grasslands de Xilamuren: assistir a uma corrida de cavalos e a uma luta mongol. A corrida passa numa piscadela, e dá pra ver que todos aqueles cavalos serenos, quase apáticos, são na verdade alazões ligeiros de primeira. 

A luta mongol acontece numa arena improvisada lá fora, com bandeirinhas juninas separando a platéia dos competidores. Oito lutadores adentram o ringue trajando um uniforme que inclui botas e saiote, cumprimentam-se e iniciam uma peleja rápida que lembra muito o esporte predileto do Borat: mão no ombro, cabeças abaixadas, ganha quem jogar o outro no chão primeiro. Dos oito, ganham quatro, que se enfrentam novamente até que só reste um ganhador. 

 
"Bota a mão no meu ombro, dá uma abaixadinha..." 

Depois, perguntam se alguém quer brincar e um dos italianos se oferece para o abate. Vestindo o uniforme mongol, ele enfrenta um dos locais. Na primeira tentativa, vai ao chão em exatos 3 segundos. Na segunda, mais maroto, tenta dar um pealo no adversário (gíria gaúcha atravessando o texto), forçando um tombo, mas acaba carregado no ar e jogado de costas na areia fina. Mas resistiu muito mais: foram longos 17 segundos dessa vez.

13:45 

Deixamos pra trás as estepes, os cavalos e as ovelhas, com destino a paisagem e animais bem diferentes. 

15:52 
Antes da nossa parada final de hoje, passamos novamente por Hohhot para visitar um museu. Felizmente, o tema não são minorias étnicas e não nos forçam a comprar bugigangas típicas ou tipicamente picaretas. Pergunto ao guia do que é que o museu trata e ele responde: "kǒnglóng", que literalmente significa "dragão do medo" e é a palavra chinesa para "dinossauros". 

Na verdade, o lugar é enorme e engloba muito mais que répteis mesozóicos. Além dos vários fósseis e os dinos animatrônicos estilo "Dinossauro" da Disney, o museu tem seções sobre História Natural, de mamíferos a insetos, exibições sobre a Terra, o Espaço, pedaços de satélites chineses, roupa de austronauta chinês (o famoso "taikonauta") e grande elenco. 


 

Na saída, experimento um picolé de banana que se revela o melhor que já provei na China até agora. 

17:10 
Estamos todos no ônibus, menos duas coreanas que se perderam sabe-se lá onde, porque o museu tem placas mil e o ônibus está plantado na entrada principal. Qual parte do "vamos sair às 17h em ponto" elas não entenderam? 

17:28 
O guia acha as fujonas e enfim podemos zarpar. 

19:30 
Entramos em Baotou 包头 ou "Bāotóu", em chinês), maior cidade da Mongólia Interior, com suas 2,4 milhões de almas. Estamos aqui só pra comer e dormir. A impressão inicial não é grandes coisas: industrial, empoeirada, feinha mesmo. Jantamos num restaurante grande e de comida satisfatória. 

20:50 
O hotel Zhengbei, no centro de Baotou, de início parece bom. Camas confortáveis, televisão mostrando a versão chinesa de "We Are The World" (!!!), banheiro com água quente. Não demora muito para que percebamos sua verdadeira face: a água quente some no meio do banho, a descarga não desce nem com reza, uma mini-barata aparece pra dar oi. Também, o que esperar de um hotel que exibe orgulhosamente na fachada suas duas estrelas? 

 
Bem-vindos ao Trapa Hotel. 

21:15 
Saímos para uma volta em Baotou. A impressão melhora. Luzes azuis, quase natalinas, enfeitam as árvores de ponta a ponta. Os quarteirões são largos, os restaurantes abundam, e só irrita a mania dos motociclistas de usarem a calçada e não a rua para se locomoverem. 

 
"Ele ficou bestificado com a cidade, saindo da rodoviária viu as luzes de Baotou..." 

Virando a esquina, vejo um monte de mesas na calçada e os locais tomando sua cervejinha de domingo à noite, enquanto saboreiam espetinhos de carne, vegetais e otras cositas más. Não fosse o bicho-da-seda espetado em um dos palitos, eu podia jurar que estava em Belo Horizonte. 

No próximo post: ande de pantufas gigantes nas dunas de um deserto mongol, faça um passeio no lombo de um camelo e descubra quanto tempo pode durar um engarrafamento-monstro na China. 

04/05/2010

Onde o Gêngis Khan perdeu as botas

 
Dia 1 – Sábado, primeiro de maio de 2010 

 

Para ler ouvindo: 
Hanggai – "Drinking Song" 


05:10 A.M. 
Enquanto o sol começa a dar as caras e os bêbados retornam de mais uma longa jornada de esbórnia, já estamos na porta do McDonald's de Wudaokou, em Beijing, esperando o ônibus da excursão para a Mongólia Interior. 

Peraí, que cazzo é Mongólia Interior?, você deve estar se perguntando. Resposta simples: é uma província da China situada no norte do país, fazendo fronteira com a Mongólia "Exterior", conhecida internacionalmente apenas como Mongólia. Nesses vaivéns históricos de conquistar um pedaço aqui, ceder um território ali, a China acabou ganhando parte da terra de Gêngis Khan. Hoje, a população da Mongólia Interior é majoritariamente chinesa (80% são da etnia Han, os famosos "chineses com cara de chinês"), mas a região ainda compartilha muito da cultura, a língua e a paisagem do país vizinho. 


Pintada de laranja, a Mongólia Interior. Beijing fica no ponto amarelo um pouco abaixo. 

Eu já cogitara viajar à Mongólia Interior lá na época do feriadão de outubro , mas todo mundo foi pulando fora e o passeio melou. Veio o inverno e a viagem tornou-se impraticável - se o frio já pegava em Beijing, imagine mais ao norte. Com a chegada da primavera - sol raiando, flores desabrochando, pássaros gorjeando, sabe cumé - a idéia voltou à tona, reforçada pelos inúmeros livretos promocionais que as agências de viagem nos entregam todo dia na porta da universidade. 

Recomendaram-me evitar as tais agências, famosas por enganar os viajantes levando-os a conhecer "fábricas de cerâmica" e baboseiras afins só para arrancar uma graninha nas lojas de souvenir. Mas quando comecei a pesquisar quanto sairia ir por conta própria, só a passagem de trem já saía mais cara que o pacote completo das agências. Sem falar que o quente da Mongólia Interior é justamente o interior, e a não ser que você tenha carro, moto ou cavalo, ou curta pedir carona nas estradas chinesas, inevitavelmente vai ter que depender de outras excursões pra chegar às estepes e desertos. 

Um albergue em Hohhot me mandou por e-mail os passeios que eles mesmos organizavam. Na lista de atividades, tiveram a cara-de-pau de incluir "have a quiet and leisure time" e "stay with many Chinese tourists". Assim, acabamos cedendo aos livretinhos de porta de faculdade e escolhemos a agência que parecia menos engana-trouxa. 

05:45 
O ônibus parte de Wudaokou rumo à Mongólia. Previsão de chegada: uma hora da tarde. Do grupo que se encontra no ônibus, italianos e coreanos são a grande maioria. 
  
08:50 
Depois de passarmos a Grande Muralha, fazemos a primeira parada. Quinze minutinhos pra aliviar a bexiga e depois bora pro busão, que tem muito chão pela frente e o trânsito não tá mole não. No nosso ônibus, dois motoristas se revezam. Ambos são adeptos ardorosos da direção ofensiva, buzinando ostensivamente e arriscando ultrapassagens que eu não tento nem no GTA. 

09:17 
O trânsito é tão intenso que os motoristas, inclusive o nosso, são obrigados a desligar o motor e esperar. 


Agarrado na Rio Grande do Norte com Contorno? Sorria: feriado na China é bem pior. 

12:32 
Segunda parada. Agora já saímos da província de Hebei e chegamos à Mongólia Interior. É fácil identificar a mudança: de uma hora pra outra, todas as placas que tinham mandarim e inglês agora têm mandarim e mongol, idioma com alfabeto próprio e curiosamente escrito de cima pra baixo. 

13:08 
Ainda distantes do destino final de hoje - culpa dos engarrafamentos no caminho -, paramos para almoçar na cidadezinha de Jining (em mandarim: 集宁 ou Jínìng; em mongol eu vou ficar devendo). Não sei se foi porque não entramos realmente na cidade, mas minha impressão foi de um lugar pobre, que raramente vê turistas, quanto mais ocidentais: motoristas e ciclistas preferiam olhar para nós do que para a rua por onde andavam. 

 
Óia pra frente, fia! 

Na porta do restaurante já podíamos ouvir uma cantora se esgoelando, acompanhada por um tecladinho cafona. Ao entrarmos, descobrimos que invadíamos uma festa de casamento. Balões dourados e cor-de-rosa enfeitavam o ambiente, enquanto os familiares tiravam fotos e a noiva - vestindo vermelho, como é tradição na China - aparentemente cumpria um importante ritual: dar uma voltinha carregando o noivo nas costas (?!). 

 
"Com quem serááááá?..." Ao fundo, a foto do casal bunito, agora unidos na alegria e na tristeza. 

O almoço é aquele tradicional esquema chinês: mesa redonda com vidro rotatório no centro, facilitando a vida dos comensais, e pratos variados que vão de batatas e pepinos a carnes e melancias no palito. Todas as refeições daqui pra frente seguiriam o mesmo padrão: nada muito típico da Mongólia (famosa pelos churrascos e pelo hot pot), mas suficientemente satisfatório. 

 
Tem comida de sobra, mas os dois ali no canto superior esquerdo querem atacar o mesmo pedaço. 

13:57 
A paisagem mongol-interiorana (acertei no gentílico?), pelo menos nesse trecho inicial, não é exatamente belíssima. A cor predominante é um marrom esverdeado meio morto, as plantações são inúmeras e as ovelhas às vezes se camuflam no cenário, de tão sujas. Montanhas, moinhos e descampados enormes completam a vista. 

  

16:18 
Adentramos a capital da Mongólia Interior. Hohhot (em mandarim: 呼和浩特 ou Hūhéhàotè; em mongol é "Hohhot" mesmo, que significa Cidade Azul) foi fundada no século XVI por Altan Khan - tatatatatataraneto do Gêngis - e hoje é o lar de 1,14 milhão de pessoas. Não descemos no centro, mas da janela do ônibus eu curto o que vejo. Me parece uma cidade com as conveniências de uma capital, mas sem a loucura metropolitana de Beijing. Chama a atenção o estilo dos prédios, pintados e adornados em dourado, branco e azul. 

  

 
Tecnologia de ponta: os táxis verdes de Hohhot trazem no topo um moderníssimo painel eletrônico. 

 
Achei um barato esses carros que vi muito em Hohhot: duas rodas atrás, mas uma só na frente, como um frankenstein automobilístico mesclando carro e triciclo. 

16:52 
Bem que me avisaram antes: "eles vão te levar pra lojinhas mil e te obrigar a comprar uma porção de inutilidades". De fato, perdemos um tempo nesse aglomerado de lojas de souvenir - que eles chamavam de "produtos das minorias étnicas" - que poderíamos aproveitar conhecendo melhor Hohhot, por exemplo. Mas não nos fazem comprar nada: só temos que seguir o guia num caminho estrategicamente escolhido, enquanto vendedores oferecem chaveiros, chapéus, espadas, estátuas de cavalos, laticínios, roupas típicas e tudo o mais que a imaginação mongol permitir. 

 
Variedade pra Jiraya nenhum botar defeito. 

 
A coreana da nossa excursão gostou de empunhar a espadona. 

17:47 
De volta ao ônibus. Nosso objetivo agora é chegar às grasslands. (Eu nunca soube muito bem como traduzir essa palavra. Na viagem só ouvia "grassland" pra cá e pra lá. Os chineses chamam de "cǎoyuán", que literalmente significa planície de grama. Acho que a versão mais aceita em português é "estepe", que me lembra mais pneu do que gramado. Mas enfim.) Lentamente, a paisagem montanhosa vai se aplainando, aplainando até dar lugar à imensidão verde-chocho das estepes. Não sei se é o lusco-fusco que se aproxima ou a primavera que não chegou direito, mas eu esperava um verde mais vivo e abundante, estilo wallpaper do Windows. Aqui elas parecem muito mais "lands" do que "grass". 

  

19:34 
Assim como a Grande Muralha tem trechos inóspitos e outros preparados para receber a turistada, nas estepes não é diferente. Entramos na área de Xilamuren (em mongol, "Água Amarela", não me pergunte o porquê), que traz a cada centena de metros um acampamento dedicado a receber os viajantes no tradicional estilo mongol, ou quase isso. Logo quando descemos do ônibus, um grupo local - vestido naqueles trajes coloridos que ninguém é doido de usar no dia-a-dia - recepciona nosso grupo cantando canções folclóricas e oferecendo uma bebida forte (42% de álcool) em uma pequena bacia de metal. Não sei se era só pra bicar, mas acabei virando a baciinha toda numa sentada. O mais legal foi perceber que a música cantada por eles era a mesma "Drinking Song" que apresentei no primeiro podcast do Boca de Gafanhoto (e que repeti no início deste post), provavelmente uma daquelas canções etílicas de domínio público. Se bobear, os versos querem dizer: "Primeira bateria, vira vira vira, vira vira vira..."

19:47 
Somos levados à nossa acomodação: um yurt. Aqui novamente temos uma mistureba de nomes: "yurt" é o nome em inglês, que na verdade veio do turco. "Ger" é a palavra mongol. Para os chineses, o nome é 蒙古包 ou měnɡɡǔbāo (leia-se mangubáu). Tudo para designar a mesma coisa: as tendas tipicamente mongóis de paredes verticais e teto cônico, às vezes permanentes, às vezes construídas e desmontadas em um curto período de tempo. Nosso acampamento tem um yurt grandão, que serve de restaurante, e dezenas de outros pequenos para o pessoal dormir. Alguns são tendas de pano, outros têm a estrutura mais firme. Não posso reclamar do meu: banheiro e televisão são luxos que eu não esperava mesmo de uma acomodação nômade. 

 
O yurt visto de fora: até janela de vidro com cortina! 

  
Chuveiro, privada e TV: as tropas de Gêngis Khan jamais sonhariam com isso. 

20:59 
Depois do jantar no yurt-restaurante, começa o showzinho do lado de fora. Acendem uma fogueira, fazem uma roda e lá vem a mulherada mongol dançando e dando piruetas ao som de uma trilha que lembra muito as musiquinhas do Street Fighter. Depois vem uma apresentação de música instrumental. O instrumento em questão é um matouqin, de apenas duas cordas e uma mão em forma de cabeça de cavalo. Diz a internet que uma corda é composta de 40 fios de rabo de cavalo e a outra 60, mas eu não parei pra contar. Ao final, volta a cantoria e a música eletrônica, as dançarinas convidam o público a entrar na festa e a coisa descamba para uma inesperada rave mongol carnavalesca. 

 
O matouqin, ou "violino cabeça-de-cavalo". 
  
  

 
Festa mongol tem direito até a trenzinho da alegria. 

No próximo post: descubra quão selvagens são os cavalos mongóis, aprenda a lutar como um herdeiro de Gêngis Khan e dê uma volta no quarteirão da maior cidade da Mongólia Interior. 

Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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