The long way home: Roger Hodgson em Berlim
A primeira vez que subi num palco pra cantar foi em 1992, quando meu tio Leca tocava saxofone numa banda cover de Supertramp.
Eu tinha sete anos e era supertrampmaníaco havia meses, desde que assistira a um show da Companhia Supertramp no aniversário de um amigo do meu pai. Em pouco tempo já havia decorado uma porção de letras dos discos que tínhamos em casa, lendo os encartes e tentando associar a grafia estranha daquele idioma aos sons que saíam dos LPs. Lembro de achar que o "AM" do rádio era a mesma palavra contida em "The Logical Song", no verso "Please tell me who I am". Toda vez que Roger Hodgson cantava "Who I aaaam? Who I aaaam?", eu apertava o "AM" do rádio, numa cândida tentativa de interagir com a canção.
Meses depois, a Companhia Supertramp estava no palco de algum bar em BH e eu lá com meus pais, curtindo o show e tendo provavelmente minha primeira experiência num boteco. A essa altura, os caras da banda sabiam que o saxofonista tinha um sobrinho pirralho que memorizara boa parte do repertório. Lá pelas tantas, acharam divertido me chamar ao palco e eu fui, muito mais desinibido do que nos primeiros shows da minha banda ABUNN dez anos depois. Marcos Temponi, vocalista e baixista, cochichou-me as coordenadas:
- Você espera a introdução, eu conto até quatro e você começa. Vamos lá, um, dois…
Eu ignorei as instruções rítmicas e comecei a cantar na hora que quis — provavelmente no tempo certo, já que conhecia aquelas músicas como se fossem "Atirei o Pau no Gato". Mas fico imaginando o sotaque com o qual não devo ter cantado "The Logical Song":
- Uen auas iangue, itsims dê láifuassou uânderfou…
Vinte e três anos se passaram desde então, mas nunca deixei de curtir Supertramp. Crime of the Century, Breakfast in America e Even in the Quietest Moments permanecem entre alguns dos meus discos favoritos dos anos 70, vira e mexe toco "Give a Little Bit" no violão por aí e dia desses até comprei o DVD do Supertramp Paris, icônico show gravado em 1979 ao qual ouvi por muitos anos numa fitinha dupla presenteada por meu tio Kiko no meu aniversário de oito anos — ele até mesmo redesenhou a capa do álbum com lápis de cor na caixinha do cassete.
Foi um barato assistir ao DVD, não só porque as músicas são foda, mas por raramente ter visto material visual do Supertramp nesses anos todos em que sou fã da banda. Dar caras às vozes, sabe cumé? Ver Roger Hodgson caprichando nos agudos, Rick Davies se esmerando no piano e nas caretas, John Helliwell saxofonando, palhaçando e comandando o falatório entre-canções. Deu uma baita vontade de ver esses caras ao vivo, juntos, com a química que tinham nessa gloriosa fase áurea dos anos setenta.
O que não vai acontecer. Roger Hodgson, voz e mente por trás de alguns dos maiores hits supertrâmpicos ("The Logical Song", "Dreamer", "Breakfast in America", "Give a Little Bit"), se mandou do grupo em 1983. Rick Davies — igualmente talentoso e criador de "Rudy", "Crime of the Century", "Bloody Well Right", "Asylum" e outras pérolas — continuou liderando o resto da patota e está aí até hoje, gravando e fazendo turnês de vez em quando, ainda carregando a marca Supertramp. Mas assim como Mutantes sem Rita, Barão Vermelho sem Cazuza, Raimundos sem Rodolfo e Bucheca sem Claudinho, o Supertramp não é a mesma coisa sem Roger Hodgson.
Hodgson também permanece por aí, rodando o mundo com as canções que o consagraram há tantos anos, e embora vê-lo num show solo também não equivala (palavra estranha) à improvável experiência de ver um dia o Supertramp original ao vivo, não titubeei quando soube que ele vinha a Berlim e comprei o ingresso no ato — assim como, anos atrás, tampouco hesitei em ver os Mutantes duas vezes, mesmo sem Rita, e certamente assistiria a Rick Davies com o Supertramp atual (eles também viriam à Europa agora no segundo semestre, mas infelizmente tiveram que cancelar a turnê enquanto Davies se recupera de um câncer).
O cenário: Tempodrom, uma casa de shows no centro de Berlim que, ano passado, recebeu o grande Steven Demetre Georgiou — conhecido hoje em dia como Yusuf Islam, e bem mais famoso sob "Cat Stevens" — em seu retorno triunfal às turnês mundiais. E assim como na apresentação de Cat Stevens, eu, que já não tenho mais sete anos de idade, era provavelmente o mais novo na plateia inteira.
Roger começou o show no piano, mandando a emocionante "Take the Long Way Home", que abria o lado B do Breakfast in America e por algum motivo me lembra um ponto de ônibus de uma rua do bairro Jardim América em BH. Logo em seguida emendou com "School", uma de suas poucas composições conjuntas com o parceiro de banda Rick Davies. A banda que o acompanhava, como é de praxe nesse tipo de show, reproduzia impecavelmente todos os backing vocals, solos de guitarra e modulações gaitísticas das canções originais. Destaque para Aaron MacDonald, o multi-instrumentista que toca saxofone e teclado e faz as vezes de John Helliwell, com dancinhas e tudo.
Desde o início, fica claro que a voz de Hodgson continua ótima. Ainda mais se tratando das melodias que ele compôs, todas cheias de notas altas. Experimente cantar "Dreeeeeeamer" pra ver se é fácil — e olha que o cara tem 65 anos de idade. Pense no Robert Plant, que aos 67 praticamente "regula" (como diria minha avó) com Roger Hodgson e precisa cantar as músicas do Led uma oitava abaixo.
As composições de Hodgson sempre tiveram uma pegada mais folk, mais pop, enquanto Rick Davies tendia mais para o progressivo e o jazz, com solos trabalhados e estruturas pouco convencionais. Muitos dos hits escritos por Hodgson que eu adorava quando criança — "It's Raining Again", "Breakfast in America" — me soam hoje meio bobinhas, e eu não estou sozinho nessa: o próprio Roger contou no show que escreveu essa última em 1 hora quando era adolescente, e não tem lá muita certeza do que queria dizer com a letra. A plateia do Tempodrom, no entanto, cantou e vibrou com todas essas. As boas canções solo de Hodgson, como "Death and the Zoo", também tiveram boa recepção, mas — nenhuma surpresa — sem a intensidade dos sucessos do Supertramp.
Entre as minhas preferidas estiveram "Don't Leave Me Now" (que tem um título irônico, considerando que é a última canção do último álbum com Roger no Supertramp) e "Fool's Overture", uma longa e elaborada música com várias partes, 10 minutos de duração e um show de luzes ao qual a foto acima, tirada no escuro com o celular, definitivamente não faz jus. Hodgson pode ter escrito coisas simples como "It's Raining Again", mas quando queria, sabia ousar na estrutura e experimentar novas possibilidades. "Fool's Overture" foi a última música antes do bis e terminou o set principal num final teatral e apoteótico.
Todo show desse tipo acaba num inevitável "Foi ótimo, mas faltou…". O show de Roger Hodgson foi ótimo, mas faltaram "Even in the Quietest Moments" e "Hide in Your Shell". Não dá pra se ter tudo.
Mas teve no bis:
Now's the time that we need to share
So find yourself, we're on our way back home
Oh, going home
Don't you need, don't you need to feel at home?
Ver "Give a Little Bit" ao vivo, na própria voz que já ouvi tantas vezes desde que tinha sete anos de idade, é como estar em casa.
Setlist:
1. Take the Long Way Home
2. School
3. In Jeopardy
4. Lovers in the Wind
5. Breakfast in America
6. Along Came Mary
7. The Logical Song
8. Lord Is It Mine
9. Had a Dream
10. The Meaning
11. Death and a Zoo
12. Only Because of You
13. Child of Vision
14. The Awakening
15. Don't Leave Me Now
16. Dreamer
17. Fool's Overture
18. Give a Little Bit
19. It's Raining Again
Berlim , memórias , música , Roger Hodgson , shows , Supertramp
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