29/09/2009

De volta ao pré-primário

 

Quando tomei a decisão de vir para a China, procurei em Beagá algum lugar para aprender um básico de mandarim e não passar tanto aperto na hora de estudar de verdade. Mas ou as escolas eram caras demais ou já estavam no meio do semestre. Foi através de um fórum em português sobre a língua chinesa na internet que encontrei o Chéng, taiwanês criado no Brasil que topou me dar aulas particulares na casa da minha avó (?!), que era perto da agência onde eu trabalhava. Por dois meses pude me familarizar com sons, números, caracteres, cumprimentos, nacionalidades, usando coincidentemente um livro-texto da própria BLCU, onde estudo agora. O livro era destinado a crianças, mas ser um chinês de 5 anos de idade e um rapaz latino-americano de quase 25 dá no mesmo quando a tarefa é ler ideogramas. 

Não fui exatamente o aluno mais aplicado do mundo nas minhas aulas de mandarim no Brasil, mas quando cheguei a Beijing e fiz o placement test da BLCU, acabei pegando a classe A6, o que significa que ainda sou analfabeto e incapaz de discutir com um motorista de táxi, mas já sei dizer "nǐhǎo" no tom certo. São trocentos níveis diferentes. Só no A, que é pra quem não fala lhufas, vai do A zero ao A15. Depois tem o B, pra quem já sabe uma gramática básica e consegue pedir comida com mais propriedade, e por aí vai até chegar no F, pra quem é fluente mesmo, como eu e você deveríamos ser em português. 

O tal do placement test era só uma folha com perguntas básicas em inglês: você já estudou mandarim antes? Sabe o que é "xièxiè" e "zàijiàn"? Reconhece os caracteres de "lǎoshī"? Teve um teste oral também, que durou 2 minutos. A professora até perguntou se gostaríamos de fazer a prova para o nível A+ (a partir da classe A10), mas dei uma olhada e só o placement test era todo em mandarim. Não, brigado, fico com o meu A6 que tá bão demais. 

O mais engraçado foi na hora do teste oral. As duas primeiras perguntas foram: qual o seu nome? E qual a sua temperatura corporal? E eu: sei lá, trinta e seis? Ela se deu por satisfeita e anotou o dado. Isso é que é estranho: eles parecem preocupados com a gripe suína e todo dia querem saber, na hora da chamada, qual é a nossa temperatura, mas ninguém lasca termômetros sob os sovacos dos alunos para averiguar a veracidade das informações. Aí a gente começa a inventar números quebrados: trinta e seis e meio, trinta e seis ponto três, trinta e seis ponto quatro. No fundo, acho que é só para praticarmos a pronúncia dos números. 

A pergunta que não queria calar: as aulas do nível básico são em chinês ou em inglês? Sem delongas: é tudo em chinês. Explicações, exemplos, perguntas, respostas dos alunos. Os livros, no entanto, têm certas traduções em inglês, e quando é realmente necessário a professora faz uso da língua de Hemingway. Afinal, dá muito mais trabalho explicar o que é "Chángchéng" com mímicas malucas do que simplesmente dizer "Great Wall". 

 

Um dia normal de aula é assim. Às 8h em ponto (chineses são sempre pontuais) entra a professora Liáng para lecionar gramática. É a aula em que a gente mais aprende. As lições começam sempre com um vocabulário que vem crescendo a cada dia – semana passada tínhamos 13 caracteres pra aprender por dia, agora já são 30. Ela escreve no quadro o p ny n (nome dado à transcrição dos ideogramas no alfabeto romano), faz a gente repetir quinhentas vezes, escreve os caracteres ao lado, apaga o pīnyīn, repetimos de novo, na ordem do livro, depois em outra ordem. É tanta repetição que a gente acaba guardando. 

Depois vêm os diálogos. Por exemplo: 

- Você está cansado? 
- Não, não estou. Estou com sede. 
- Você quer beber Coca-Cola? 
- Sim. 
- Aqui está. 

Pois é. Além de cumprimentos e verbos como falar e comer, as primeiras lições de qualquer livro de mandarim sempre incluem "Kěkǒu-Kělè" (Coca-Cola), "Mài Dānláo" (McDonald's) e "Kěndéjī" (KFC). Aprendemos a falar Coca-Cola em chinês antes de sabermos pedir um Pato de Pequim. Imagine uma coisa dessas na China de trinta anos atrás. 

Todos os dias temos quatro aulas de 50 minutos, com intervalos de 10 ou 20 entre elas. Então dá tempo de tomar um ar, bater papo com o pessoal do lado de fora do prédio, comprar uma água ou um croissant. Comer e beber é sempre muito barato. Embora no Run Run Shaw Building, onde estudo, a água seja o dobro do preço do mercado aqui perto do meu dormitório, ainda assim 550ml saem por R$ 0,53. 

Às terças e quintas, depois da aula de gramática, chega a professora Hé para as aulas de listening. São duas horas ouvindo e repetindo sons, distinguindo tons, adivinhando terminações que soam quase iguais (vai diferenciar um áng de um éng logo de manhã pra você ver). Outro dia fizemos um joguinho entre as três fileiras: a professora falava uma sílaba e tínhamos que procurar entre várias opções a consoante inicial, a terminação e o tom correto. Nossa fileira ficou em 2º lugar, apenas um ponto atrás do primeiro colocado. É como voltar ao pré-primário. 

Às segundas e sextas é a vez da professora Zhèng. Justo no dia mais preguiçoso e naquele em que estamos com um pé no fim-de-semana, temos a lǎoshī mais elétrica de todas. Se aqui não fosse a China, apostaríamos que ela toma uma dose de cocaína no café da manhã. Todo mundo com cara de sono e ela na velocidade cinco: 

- Nǐhǎo! Nǐ lèi ma? Nǐ máng bu máng? Nǐ bàba, māma dōu hǎo ma? 

A aula dela é de speaking, então ela pergunta bastante, e ainda manda a gente ir na frente da sala interpretar diálogos. Agora eles andam fazendo mais sentido, mas no início, com nosso vocabulário ainda precário, beiravam o non-sense: 

- Olá! 
- Olá! 
- Obrigado! 
- De nada! 
- Desculpe! 
- Não há de quê! 
- Tchau! 
- Tchau! 

Somos 18 pessoas na classe. Dois americanos, um francês, um australiano, um indiano, uma menina do Cazaquistão, vários das Filipinas, Malásia, Indonésia. Tem um que é meio israelense e meio americano. Outro é meio americano, meio dinamarquês, só que nasceu em Amsterdam. E tem eu, nascido e criado no Brasil, filho e neto de brasileiros, a quem as professoras chamam de Lùkasī ou algo assim. É, já sei pedir cerveja mas ainda não aprendi a escrever meu próprio nome. Um dia chego lá.

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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