20/01/2010

Karaokê, uma instituição asiática

Lembra da febre do videokê no Brasil? Lá pelo fim dos anos 90, qualquer birosca tinha uma maquininha com dois microfones e uma seleção de canções que misturava Djavan, Mamonas Assassinas, Tetê Espíndola e Só Pra Contrariar. Pois na China – e na Coréia, e no Japão... – o ato de se esgoelar em público em reinterpretações baratas de sucessos musicais não é uma febre, é uma instituição.

A palavra “karaokê” é japonesa, como é fácil deduzir, e literalmente significa “orquestra vazia”. Na China, o nome oficial é “kǎlā ōukèi” ou 卡拉OK (isso mesmo, com um OK ocidental disputando espaço com os ideogramas), mas é muito mais fácil esbarrar por aí com a sigla pelo qual é mais famoso: KTV. Shoppings, prédios comerciais, becos escuros, hutongs – quando você menos espera, olha pro lado e tá lá um KTV chamando pro abraço. Uma busca rápida no Google Maps por “KTV Beijing” indica quatro mil, quatrocentos e oitenta e seis resultados.

 
Quer impressionar sua namoradinha chinesa? Tente uma canção de amor local que ela vai gamar. 

No início não era nada que me fizesse dizer “que puxa! hoje não vou nem tomar café, vou direto pro karaokê!”. Tanto que demorei uns três meses de China pra encarar um KTV de perto. Sei lá, a imagem que eu tinha era de pessoas em roupa de banho cantando “Papo de Jacaré” num fim de tarde em Iriri, então você me entende. Após um jantar de aniversário, no entanto, aproveitamos a presença de um KTV no mesmo prédio do restaurante e alugamos uma salinha por duas ou três horas. Resultado: nas cinco semanas seguintes, voltei ao karaokê outras sete vezes, incluindo o primeiro reveillón que passei sem assistir à queima de fogos. 

Uma noite típica num KTV é assim: 

Começa com a decisão de aonde ir. Você já jantou, brindou umas cervejas e agora precisa urgentemente de um lugar pra continuar a noitada. O primeiro que vem à cabeça é Sanlitun, com seus infinitos pubs e boates, mas que fica longe, é caro e invariavelmente toca música ruim. Não demora até alguém sugerir karaokê, que é sempre mais perto e mais barato. Nosso preferido é um KTV coreano em Wudaokou, que além de um catálogo bem variado tem soju, o destilado coreano feito de arroz que desce que é uma beleza. 

Você entra no lugar e aluga uma salinha. Porque geralmente é assim, não é um bar enorme com um palco onde você tem que subir e encarar uma multidão de rostos desconhecidos sedentos por um deslize vocal, mas um complexo com dezenas de salinhas pra você juntar só os mais chegados e passar vergonha em ambiente privado. São tantas que, dependendo do seu senso de direção e/ou grau etílico, corre o risco de você ir ao banheiro e na volta errar de sala, topando com um bando de coreanos cantando animadamente os últimos sucessos das paradas de Seul (já aconteceu comigo...). 

Em seguida, enquanto o garçom traz as cervejas e as garrafas de soju que você pediu na entrada, é hora de folhear o catálogo e escolher quais as canções você está afim de estragar. Alguns lugares disponibilizam um computadorzinho, mas particularmente prefiro os átomos aos bits, é mais prático passar o olho numa lista de papel do que descer a barra de rolagem trocentas vezes até achar o que quer. 

O cardápio é amplo e passeia por clássicos do brega internacional como “Total Eclipse of the Heart” e “Everything I Do (I Do It For You)”, hits de todas as décadas – de Sinatra a Spears – e todas aquelas músicas que você sempre achou que sabia a letra, até descobrir que não passava nem perto. Brasileiras? Vi umas do Angra dando sopa. Mas se os idiomas orientais forem seu forte, você encontra um mundaréu de canções em chinês, coreano e japonês à sua disposição. Com sorte dá até pra achar o tema do Daileon: “Ôôô cara tossiu...”

O equipamento básico não varia muito: uma televisão, duas se a salinha for uma salona, dois microfones com reverb ligado no máximo áximo áximo e, às vezes, um pandeiro meia-lua pra você sacudir fora do ritmo. E a bebida, que é essencial. Sem ela o pessoal fica inibido e a coisa demora a engrenar. No ano-novo, por exemplo, duas amigas nossas chegaram com a cara amarrada porque queriam era balançar o esqueleto em alguma boate cara de Chaoyang. Poucas doses de soju depois, era preciso tirá-las à força de frente da tevê. 

E quando a garganta ameaça pifar, o melhor é se acomodar no sofá, rir um bocado dos amigos e, principalmente, dos vídeos estranhos que acompanham as canções. Porque, na maioria das vezes, não têm um pingo de relação com o que diz a letra. “Another Brick in the Wall” pode vir com a imagem de um casal de patos se exibindo em um lago europeu, “Fear of the Dark” com uma cândida garota pensando na vida enquanto toma um sorvete ou “Girls Just Wanna Have Fun” com cenas de guerra de um filme japonês. Mais raro, mas ainda mais divertido, é se resolvem investir em sósias dos artistas e reencenar, com requintes de excentricidade, seus videoclipes que marcaram época. Aí é impossível soltar a voz sem deixar escapar uma gargalhada. Acho que o propósito da coisa toda é justamente esse, no final das contas. 

 

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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