06/11/2008

A velha, o coronel e o gogo-boy aposentado



Começou com uma frase prosaica: "Antônio levantou-se, abriu a janela, e viu Maria lá embaixo, à espera". O desafio era, a partir dela, escrever o capítulo inicial de um folhetim em 10 partes. Eram dez também os concorrentes: só entrava no páreo quem tinha texto publicado na piauí em 2007, no concurso literário "encaixe a frase" - meu conto, que selava o destino da pobre Mirela, foi publicado em novembro do ano passado. E cada vencedor ainda levava oitocentos merréis para gastar com mulheres e bebidas.

Missão aceita, pus-me a escrever. Fiz o meu capítulo I seguindo uma sugestão de meu pai, que viu na frase uma possibilidade de narrar a chegada de Augusto Paio, seu progenitor, ao Brasil. Queria ganhar logo no primeiro mês porque seria o texto a pôr no mundo os personagens e dar o tom da história. Nada feito: o vencedor foi o cearense Ciço Léo, cujo Antônio era um ex-gogo-boy vivendo em companhia de Maria de Maria, velha viúva do famigerado coronel Mergulhão. A maior das penúrias que ele tinha de viver era dormir com a velha debaixo da cama - daí o apropriado nome escolhido para o folhetim, "A Velha Debaixo da Cama".

O capítulo seguinte deveria continuar o texto publicado. Foi o que fiz em meu capítulo II, dando prosseguimento à fuga de Antônio das garras de Maria e matando precocemente a velha no final. Na história vencedora, de Rodolfo Viana, ela continuou vivinha e Antônio nem chegou a fugir, impelido a ficar depois de receber um enigmático envelope. Rodolfo privou os leitores de conhecer o remetente da carta e me pôs em maus lençóis: passei dias imaginando quem seria o misterioso autor da missiva até resolver descambar de vez para a bobagem. No meu capítulo III, o pacote trazia a nova edição da assinatura da revista Fuxicos & Fofocas, da qual Antônio era fã confesso - como ele poderia dar no pé e não poder mais ler semanalmente sobre a vida dos famosos? O texto escolhido pela piauí, de Cláudio Parreira, ressuscitava o ex-finado Coronel Mergulhão e dava a Antônio uma proposta para pensar: se desistisse de fugir e ficasse, fazendo Maria sofrer mais a cada dia, receberia uma fortuna de 10 milhões em dinheiro vivo.

Pus a velha pra sofrer em meu capítulo IV, onde Antônio tentava com todas as armas transformar Maria num trapo triste e miserável, a um passo do suicídio. Já o Franco Neviani, autor do capítulo vencedor, colocou Antônio à procura de alguma foto do coronel Mergulhão, até o momento em que ele olha a foto, olha o espelho e percebe uma semelhança que nunca tinha lhe passado pela mente. No meu capítulo V, Mergulhão finalmente apareceu, velho e morando num porão suspeito. Enviei pra redação da piauí nos acréscimos do segundo tempo, quase estourando prazos e números de caracteres, e qual não foi minha surpresa ao ver no site da revista: "O vencedor do Capítulo V é um mineiro de Belo Horizonte, Lucas Paio. Enviou seu texto na penúltima hora, quando já se dava como certa a vitória de outro candidato aos 800 reais do Bolsa-piauí com que a revista beneficia o melhor escriba do mês".

Pelas regras do concurso, não participei do capítulo VI, cujo autor foi Rodolfo Viana, agora bicampeão. Voltei no capítulo VII, em que botava Maria e Antônio para planejar o assassinato Mergulhão. Já o capítulo VII vencedor, novamente de Franco Neviani, ia por outros caminhos e dava a Mergulhão um fim que ele não esperava.

Perdi o prazo do capítulo VIII, que deu o tricampeonato a Rodolfo Viana, e do capítulo IX, que foi vencido por Ciço Léo e terminava com Mergulhão ainda morto, Antônio trancafiado na cadeia e Maria morta de remorso, saindo de casa após um ano inteiro de reclusão, com a intenção de fazer uma visita. Depois de tantos bicampeonatos, achei que conquistaria também o meu e fecharia a história do jeito que imaginara desde janeiro, ao escrever o capítulo I. Mas, dos sete na disputa, foi o niteroiense W. Surtan quem levou o caneco do capítulo X - merecido, claro, como o foram Ciço, Rodolfo, Cláudio, Franco e os outros que não levaram, mas competiram com classe (como Hemetério, que fez até história em quadrinhos). Fundamos comunidade no orkut - procure por "leitores escribas da piauí" - e fica a expectativa de um convite da revista para um jantar de gala no Rio de Janeiro com os dez participantes, quem sabe?

Quanto a mim, terminaria a história desse jeito:

A Velha Debaixo da Cama
Capítulo X - Réquiem

Ele rumina mais um pedaço da broa de fubá e sentencia: ficou ótima. O aconchego da cadeira de palha e o ar parnasiano que entra pelas janelas do sobrado são tudo o que ela precisava, depois de tanto tempo. Faz o mesmo tanto que eles não se vêem, e não são boas as memórias que têm daquela última vez: ela entregue a um sexo selvagem totalmente desatinado, ele no chão, levando coronhadas. É nítido que envelheceram, e isso que velhos já estavam e muito. Mas, se antes um mantinha uma cômoda rotina de bon vivant em seu bunker luxuoso sob o quarto de dormir, e a outra tinha um amante a quem tanto lhe aprazia espezinhar, agora sofriam os resultados de tanta reclusão; a dela física, enfurnada em sua amuralhada casa-zôo, a dele fisiológica, eremita de si mesmo, num coma cárus que durara um ano. Como que acostumados, preferem o silêncio. Ele evita insistir na mesma tecla e maldizer Gervásio, sujeito exagerado, a quem pedira só um desmaio e não um traumatismo de tamanho tal. Não se dá ao trabalho de queixar-se do período que perdera e de todos os fatos importantes que não pudera presenciar, do honroso segundo lugar do Íbis no campeonato nacional ao retorno triunfal de José Sarney à Presidência da República. Tampouco quer saber qual foi a reação do povo ao defunto risonho e ceroso que descansava no ataúde: admirava o escultor mas achara a obra de um mau gosto ímpar, e na próxima farsa preferia ser cremado. Não: ele não diz nada, e ela não faz perguntas – não é para isso que estão ali. Quando só restam farelos na travessa da broa e a derradeira gota do café pingado jaz fria no fundo da xícara, ele abre um sorriso debaixo do bigode vasto. Desta vez é um sorriso autêntico, e ela sabe. Tanto que emenda: então vai ser isso mesmo? E ele: é. Parece um jeito bom de passar o tempo que a gente ainda tem. Além do mais, tenho certeza de que ele vai gostar. Olho no olho, tratam-se carinhosamente: Maria, sua sórdida. Plínio, seu sujo. Só não se beijam porque na idade deles soaria ridículo, mas é como se fosse.

Antônio esfregou os olhos e viu a cela aberta. À sua frente, um homem de uniforme; nas mãos, um envelope. Arruma suas coisas que já tão te esperando, disse o homem antes de virar as costas. Antônio olhou intrigado o invólucro pardo e notou o logotipo familiar: L'Île de La Tentation. Apressado, leu a missiva. Era um aviso – o cabaré agora estava sob nova administração – e um convite expressamente irrecusável – os novos donos receberiam Antônio Euclides de braços abertos para a aguardada retomada de sua carreira artística; em outras palavras, Conan, o Bárbaro, voltaria a rebolar no queijo. Já estavam todos avisados do equívoco que o levara às férias forçadas, dizia a carta; os tempos de dormir em cantos de celas ou debaixo de camas viravam passado. Dois garranchos assinavam o rodapé, mas nem seguindo o traço com atenção Antônio pôde decifrar os nomes. Olhou para a porta da cela destrancada e o homem de uniforme que o apressava; olhou de volta a carta, assombrado. Compreendeu enfim. Antônio levantou-se, abriu a janela, e viu Maria lá embaixo, à espera.

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Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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