Justificar é preciso
A poucos dias das eleições, telefonei para a Embaixada para descobrir, afinal de contas, o que eu deveria fazer. Estou na China há um ano, mas meu título continua nas alterosas. Ainda em BH, o rapaz do Disk-Eleitor me informara de que eu precisaria ir ao consulado mais próximo, no dia 3 de outubro, e justificar minha ausência nas urnas.
O site da Embaixada do Brasil em Pequim, malfeito como qualquer página governamental, não trazia essa informação: só dizia que os eleitores que transferiram o título para Pequim deveriam comparecer à embaixada e exercer seu direito de ser obrigado a votar. Resolvi ligar antes pra não perder a viagem: da minha casa até a embaixada, entre caminhadas, metrôs e baldeações, levo uma hora e meia.
A primeira vez que visitei a embaixada brasileira foi em fevereiro. Já estava por aqui havia 5 meses e planejava ficar mais um tanto bom. Por isso fui lá me apresentar como cidadão brasileiro, deixar meu nome e telefone, ter um registro paro caso de sei lá, estourar a Terceira Guerra Mundial e eu precisar de uma vaga no helicóptero de fuga.
O prédio é cercado por embaixadas por todos os lados. Kuwait, Bangladesh, Tailândia, Grécia, Benin, Colômbia, uma seguida da outra. As fachadas não variam: é sempre um guardinha plantado o dia inteiro, bandeira orgulhosamente hasteada, placa em inglês, chinês e o idioma do país em questão. A embaixada de Bangladesh tinha um anúncio curioso e meio triste: “Visite Bangladesh antes que os turistas venham”. Mas é a dos Estados Unidos que mais chama atenção. O número de guardinhas é muito maior e há grades pesadas e arames farpados metendo medo nos passantes.
Na embaixada tupiniquim, o clima é bem relax, como convém a qualquer órgão do governo. Emendam tanto os feriados brasileiros quanto os chineses. Se você ligar às três da tarde, periga ainda estarem em horário de almoço. A salinha de atendimento a brasileiros é pequena, só uns sofazinhos, um jornal chinês do dia e revistas velhas do Exército Brasileiro.
Falei que queria me registrar e descobri que ganharia até uma carteirinha. Não pude fazê-la no dia porque precisava de foto 3x4. Como estava de férias e tinha tempo de sobra, voltei na semana seguinte só pra levar a fotografia. Mas novamente voltei pra casa de mãos abanando. O motivo era brasileiríssimo: a impressora deu pau e ninguém sabia arrumar. O cara prometeu que me enviaria a carteirinha pelo correio.
Isso foi em fevereiro. Passou março, abril, maio, junho, julho, a neve foi embora, o verão chegou escaldante, estudei mais um semestre de chinês, e nada na minha caixa de correio. Mandei e-mail e não obtive resposta. Era mais questão de honra do que qualquer coisa, porque, pra falar a verdade, essa carteirinha não serve pra nada. Vou fazer o quê, dar carteirada e berrar: “você sabe com quem está falando?”
Quando liguei pra lá semana passada em busca de informações eleitorais, quem atendeu foi uma chinesa. O português dela é até razoável, melhor que o meu mandarim, mas insuficiente para passar instruções que eu pudesse compreender. Uma brasileira ao seu lado soprava o que ela tinha que falar, mas a fala vinha toda truncada. Ela tentava explicar e perguntava: “Entendiu? Entendiu?”. Pedi que passasse à brasileira ao seu lado. Era outra perdidinha. Cheguei a ler por telefone vários trechos que encontrei no site do TSE, e ela ainda me agradeceu pelas informações.
Aproveitei o telefonema e perguntei pela bendita carteirinha. Ela folheou os arquivos e lá estava meu formulário, ainda por fazer, mesmo depois de 8 meses. Mencionei a impressora estragada e ela confirmou:
- É, realmente ela está com problema mesmo.
“Está”, no presente! Depois de 8 meses.
Ontem, dia das eleições, resolvi ir pessoalmente à Embaixada para tentar solucionar minha pendência cívica. Combinei com um amigo baiano, encarei a jornada de 1h30 e cheguei lá munido de passaporte e título de eleitor, mas sem muitas esperanças: tudo indicava que voltaria sem resolver nada e teria que me virar sozinho.
Dito e feito. Tenho que mandar minha justificativa por uma viagem de meio mundo e fazê-la chegar às mãos do juiz da minha zona eleitoral, que vai decidir se ela é válida ou não. O procedimento é igual para qualquer eleitor brasileiro no exterior, mas com título inscrito no Brasil.
Esteja morando em Miami, na Chechênia ou no Timbuctu, você deve:
1.Imprimir o Requerimento de Justificativa Eleitoral disponível no site do TSE ;
2.Preencher o requerimento com letra legível, explicando ao excelentíssimo senhor juiz que você se encontra longe da pátria-amada e não pôde comparecer às eleições;
3.Anexar cópia do passaporte e “prova do motivo alegado”, que não entendi direito (disseram na Embaixada que só o passaporte tá tranqüilo);
4.Enviar tudo para o Cartório do seu município por carta registrada (se vire para achar o endereço, ou tente aqui );
5.Repetir o processo todo de novo, porque teremos segundo turno, e é uma justificativa pra cada turno;
6.Você tem 60 dias (contando a partir de cada turno) para mandar sua cartinha para o senhor juiz.
São 130 eleitores brasileiros com o título transferido para Beijing. Parece muito, mas comparando com os 6 mil no Japão, os 23 mil em Portugal e os 66 mil nos Estados Unidos, não faz nem cosquinha. Quem vota no exterior só vota para presidente. Faz sentido, senão o banco de dados da urna precisaria ter todos os candidatos do Brasil, e haveria idiota votando no Tiririca até aqui na China.
Pior do que tava, ficou.
A embaixada estava vazia: a funcionária que atende os brasileiros disse que estava tão sem o que fazer que fora “até” fazer umas carteirinhas. Aproveitei a deixa, perguntei quando é que iriam enviar a minha, e eis que ela soltou um “não temos a política de enviar carteirinhas pelo correio”. Mas foi prestativa, tirou meu formulário dos arquivos e fez o documento ali mesmo, na hora. A mão, claro – a impressora continua pifada.
O nome oficial do documento é “Cédula de Matrícula de Cidadão Brasileiro”. Tem foto, local e data de nascimento, nome dos pais, endereço, assinatura do vice-cônsul e a frase “Roga-se às autoridades estrangeiras que prestem ao titular auxílio e assistência em caso de necessidade” grafada em 3 línguas – português, inglês e... francês. Nada de chinês. O mais engraçado é o número da matrícula: 08/2010. Oito meses esperando o negócio ficar pronto, e foi só a oitava carteirinha do ano! Só de pirraça, vou anexar na minha carta ao juiz como prova de que estou mesmo na China, com um bilhete: você sabe com quem está falando?
Publicado originalmente no Boca de Gafanhoto
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