27/03/2009

Salada não leva a nada



Quando se é criança, legumes e verduras são ameaças diárias. Você está lá tranqüilo assistindo TV Colosso, e quando o cozinheiro encerra o programa bradando a plenos pulmões: "Tá na horra de matar a fomê! Tá na mess pessoaaal", sua mãe avisa que o almoço encontra-se pronto, quente e devidamente posto à mesa. Então você se regozija com a perspectiva de bater um pratão de lasanha com batata frita, regado a coca-cola e seguido por uma caixa de Bis, mas o que encontra é uma decepcionante combinação de arroz com lentilhas, carne moída com azeitonas, quiabo, abobrinha e rúcula.

E o pior é que mãe tem argumento pra tudo. Do tenebroso "é saudável" ao autoritário "se não comer, não tem sobremesa", estão todos na ponta da língua, prontos pra fazer você parar de chiar e mastigar logo a refeição. Algumas cogitam até a violência física, situação exemplificada no clássico poema "Menino Luxento":

Menino luxento,
Você quer empada?
-Não, mamãezinha,
Está muito salgada.

Menino luxento,
Você quer pudim?
-Não, mamãezinha,
Está muito ruim.

Menino luxento,
Você não quer nada?
Menino luxento,
Pois tome palmada.

Há ainda uma variação muito perigosa: "como você sabe que é ruim, se nunca experimentou?". Perigosa porque mãe é uma espécie com memória convenientemente curta para certas coisas. Não importa que anteontem você tenha feito o maior esforço do mundo pra engolir aquele guisado diabólico. Ela vai botar outra colherada no seu prato e pedir pra você tentar de novo. Sem falar que, nesses casos, dificilmente as aparências enganam. Você bate o olho e sabe que dessa consistência e desse cheiro não pode sair coisa boa. (Uma exceção digna de nota são as pipocas Aritana, que parecem isopor queimado mas viciam como a mais vil das pimentinhas.)

Talvez você se vingue daqui a vinte anos, quando levar sua mãe para uma viagem a Bali.

- Mas mãe, esse morcego tá com uma cara tão boa, você tem que experimentar.

Já caí muito nesse tipo de golpe. Comi sopa de funghi achando que era caldo de feijão estragado, passei horas em frente a uma salada amarga e encarei boas doses de abobrinhas, rúculas, beterrabas, berinjelas e jilós.

- Mãe, eu não gosto de jiló.
- Mas você nunca experimentou...

Um dia me cansei. Mastiguei o jiló na frente dela, peguei um papel e escrevi: "Já provei jiló e não gostei". Diante de um documento irrefutável, ela teria que mudar de argumentos.

Mas a vida passa e os gostos mudam. Foi assim com a comida japonesa, que provei aos 11 anos e considerei hediondo. Sete anos depois, decidi concedê-la uma segunda chance e foi uma agradável surpresa descobrir que meu paladar se adaptava muito bem ao peixe cru com raiz forte.

Na última segunda-feira, por ocasião do aniversário de um amigo, aceitamos sua sugestão de pedir um prato de jiló crocante. A impressão inicial não foi das melhores: algo não vai bem com um tira-gosto que fede. O aniversariante enfrentou primeiro o desafio e fingiu satisfação com sua escolha. Logo criou-se uma regra: só podia comer o pão que vinha junto quem provasse antes o jiló. De olho na recompensa, olhei para o fruto da Solanum gilo, coberto por uma crosta de fritura, e dei-lhe uma dentada sem pensar demais. A crocância era até razoável, lembrando vagamente uma piabinha frita. Mas quando cheguei ao cerne do alimento, o gosto desgostoso veio à tona e me lembrei do pseudo-documento escrito há quase quinze anos. Provei jiló de novo, continuo sem gostar e uma terceira chance, talvez daqui a uns vinte anos.

0 comments :

Postar um comentário

Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

Busca no blog

Leia

Leia
Cinema-Múndi: Uma viagem pelo planeta através da sétima arte

Leia também

Leia também
A Saga de Tião - Edição Completa

Ouça

Ouça
Sifonics & Lucas Paio - A Terra é Plana

Mais lidos

Leia também


Cinema por quem entende mais de mesa de bar

Crônicas de um mineiro na China


Uma história parcialmente non-sense escrita por Lucas Paio e Daniel de Pinho

Arquivo

Contato

Nome

E-mail *

Mensagem *